Não podia estar mais à vontade no tema. Desde o primeiro minuto que considero que o despedimento de Christine Ourmières-Widener, uma CEO com resultados, teve como único objetivo resolver problemas políticos a António Costa, na sua demanda contra o seu putativo sucessor e de se livrar de todos os problemas, mesmo com prejuízo para o país. A ex-CEO tem tudo para vencer o processo contra o Estado português.
Não preciso, ninguém precisa, de qualquer escuta para escrever isto. Nem quero tê-las ao meu dispor. Por uma questão de proporcionalidade: o julgamento político de decisões políticas não recorre a meios extremos, garantidos pelo Estado. Isso é o que fazem as ditaduras contra os seus opositores. E, no processo de decadência das nossas democracias, em que ao jornalismo totalmente comercializado participa ativamente, está cada vez mais difícil explicar o que era óbvio para todos os democratas e amantes da liberdade.
Os limites para a utilização de um meio extremo de intrusão do Estado na vida privada dos cidadãos estão claros na lei. Eles impediriam as escutas por arrastão que o Ministério Público organizou contra João Galamba – hoje fica clara a função que lhe pretendiam dar. A justiça não escuta para descobrir crimes, escuta para recolher prova de crimes que sabe terem existido. Mesmo se ignorarmos a ilegitimidade (para não dizer ilegalidade, independentemente da autorização de um juiz) desta forma de investigar, o problema começa quando o próprio Ministério Público decide transcrever a conversa entre o primeiro-ministro e o ministro das Infraestruturas, mantendo-a nas suas mãos. A transcrição estava enquadrada em que processo? Neste caso, não há como atirar responsabilidades para outros atores judiciais: a própria transcrição daquela conversa é abusiva.
A resposta foi dada na segunda-feira, com a divulgação mediática da conversa entre Costa e Galamba, a propósito do despedimento de Ourmières-Widener. A libertação destas transcrições no momento em que o nome de António Costa está a ser negociado para a presidência do Conselho Europeu e o seu envolvimento no processo Influencer é uma pedra no sapato deixada por mais um momento de irresponsabilidade do Ministério Público indicia gestão política da violação do segredo de justiça.
Também já não tenho muita paciência para o discurso de jornalistas que acham que, tendo uma notícia nas mãos, o seu único dever é divulgá-la. Não é assim com nenhuma atividade, também não é com o jornalismo. Todas têm limites éticos e deontológicos. A utilização de escutas judiciais para revelar informações políticas sem qualquer relação com os processos que supostamente estariam a ser investigados recorre a uma forma de recolha de informação que atenta contra os mais básicos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E um jornalismo que desrespeita a liberdade não pode cumprir a sua função cívica.
A utilização destes meios ilegítimos nada tem a ver com jornalismo. As escutas foram usadas por um canal de informação por cabo no dia em que um concorrente nascia. É pura guerra comercial. Aquilo a que assistimos é à substituição do saudável pluralismo pela feroz concorrência comercial. Nela, os limites são apenas os da lei e como vemos, nem esses são cumpridos. Para o jornalismo os limites são maiores do que a lei porque a sua função é, antes de tudo, social.
Só Estados totalitários negam aos cidadãos direito a um núcleo de privacidade. Isto inclui os políticos e até inclui decisões políticas. Sem essa privacidade, a política é, aliás, impossível de se fazer. Estão os magistrados do Ministério Público disponíveis para ver todas as suas conversas profissionais na imprensa? Estão os jornalistas disponíveis para ver publicadas as suas conversas profissionais, incluindo com fontes? Por mim, não quero temer que um artigo como este ou outros que escrevi venha a resultar na divulgação públicas de conversas telefónicas privadas para me prejudicar. Não quero viver num país onde cidadãos cumpridores da lei falam através de meios de comunicação encriptados, temendo que agentes do Estado divulguem as suas conversas.
Há regimes em que o Estado pode escutar todos os atores políticos e usar as suas conversas privadas para os destruir politicamente: a RDA tinha Stasi. E há democracias em que os cidadãos perderam o apego à sua liberdade e aceitam viver num país onde o que dizem em privado pode ser usado contra si, mesmo que não estejam a cometer um crime. É tragicamente irónico que magistrados e jornalistas estejam na primeira linha contra as liberdades e garantias dos cidadãos que deviam defender. Não foi para isto que fizemos o 25 de abril e extinguimos a PIDE.