O antigo procurador-geral da República Cunha Rodrigues afirmou esta sexta-feira que tem havido “abuso das escutas telefónicas”, considerando que “não é admissível” que um governante seja escutado durante quatro anos. Para Cunha Rodrigues, divulgar escutas viola a lei e o bom senso.
À margem de uma sessão evocativa dos 50 anos do 25 de Abril, organizada pelo Conselho Superior da Magistratura no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, o também juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça defendeu que, atualmente, na Justiça “é necessário praticamente rever tudo”, face às transformações sociais e culturais das últimas décadas.
A propósito das declarações de hoje da ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, em entrevista à Antena 1, na qual assumiu “um desconforto” com a utilização das escutas em processos judiciais e adiantou que o Governo quer fazer “uma reflexão alargada” sobre o recurso a este meio de prova, José Cunha Rodrigues afirmou que a explosão de novas tecnologias “criaram condições de resposta importantes” para a justiça, mas que “implicam riscos de abuso dos direitos dos cidadãos”.
Para o antigo PGR o “abuso das escutas telefónicas” nos processos é exemplo disso, afirmando que “se é verdade que um membro do Governo esteve quatro anos a ser escutado é uma coisa que não é admissível”, numa alusão ao caso do ex-ministro João Galamba, alegadamente escutado ao longo de quatro anos no âmbito da Operação Influencer.
Sobre as escutas ao ex-primeiro-ministro António Costa, apontou uma violação da lei, afirmando que a sua divulgação pública para além de uma violação da lei é também “uma violação de uma regra fundamental para a justiça: bom senso”.
Silêncio da Justiça está a ser instrumentalizado
Por outro lado, para Cunha Rodrigues, “há uma incapacidade de comunicação” que agudiza a falta de confiança dos cidadãos e entende que o silêncio da Justiça está a ser instrumentalizado pelo poder político.
“Hoje há uma incapacidade de comunicação por parte da justiça em geral que leva a que os cidadãos cada vez agudizem mais a sua perda de confiança nos tribunais”, disse.
Defendendo que o Ministério Público (MP) e a justiça de forma geral necessitam de alterações, nomeadamente numa relação com os cidadãos em que “a justiça comunique”, o juiz conselheiro jubilado escusou-se, no entanto, a comentar o caso concreto da atual PGR, Lucília Gago, debaixo de críticas, nomeadamente por falta de explicações públicas do Ministério Público sobre a Operação Influencer, que levou à demissão do Governo de António Costa, ainda que entenda que “ela sabe o que está a fazer”.
Nuno Fox
“Agora de facto, não só o MP, mas também a magistratura judicial, têm o dever estrito de informar o público, de não deixar que cresçam deturpações nem manipulações da verdade. É isso que está a falhar também”, disse, apontando à comunicação social “uma multiplicação do ruído” que cria situações “negativas, mesmo para a isenção dos tribunais”.
Cunha Rodrigues criticou a “multiplicação de comentadores”, em que “todos parecem ter uma formação jurídica de excelência e todos parecem arrogar-se conhecer por dentro tudo”, deixando os cidadãos “totalmente baralhados”.
Para o ex-PGR o MP deve “explicar o que é necessário explicar”, ainda que seja “evidente que isso expõe sempre os agentes de justiça à crítica dos órgãos de comunicação” e sobre os pedidos de demissão de Lucília Gago, face ao silêncio da PGR, não quis tomar posição, mas criticou o que considera ser um aproveitamento do poder político.
“Não sei se se justificam [os pedidos de demissão], porque não conheço o que se passa na PGR. (…) Estranho o silêncio da justiça em geral. Não dela em particular, porque ela faz parte de um subsistema, e penso que está a dar azo a uma atitude do poder político de confronto, de escrutínio, de resolver os problemas internos da política com recurso a sistemas que estão neste momento numa situação de fragilidade”, disse.
Sobre o Manifesto de uma centena de personalidades que pede uma reforma da Justiça e critica a atuação do MP, disse que o viu como “uma prova da falta de confiança que existe em alguns setores da Justiça”, mas apontou às críticas feitas a ausência de “um pensamento alternativo” e de soluções.
Lucília Gago, procuradora-geral da República, termina o mandato em outubro de 2024
José Sena Goulão/Lusa
Sobre o caso que envolve o Presidente da República e o posicionamento da juíza de instrução, que defende que o comportamento do chefe de Estado no caso do tratamento médico das gémeas luso-brasileiras não foi neutro e devia ser investigado, Cunha Rodrigues sinalizou também neste caso um problema de comunicação.
“Eu tenho tido o comportamento de uma pessoa que ouve essas coisas, que elas são em si mesmo muitas vezes indecifráveis, porque mesmo como jurista, não entendo, dado que não há explicações públicas, dado que não há esclarecimentos, o que está neste momento em causa, se é a política, se é a ética, se é o crime, se é o interesse dos órgãos de comunicação social em terem temas”, disse.
O ex-PGR sublinhou que a justiça “não se fez para investigar política nem para investigar políticos, nem para investigar comportamentos éticos”, mas para “investigar crimes”, afirmando que neste momento vê o país “intoxicado por situações, algumas de grande gravidade e outras que a gente não chega a perceber o que está a ser investigado”.