Viajar entre os vários Estados-membros da União Europeia (UE) sem qualquer obstáculo é uma realidade para os portugueses há quase 40 anos. Contudo, para pouco mais de um milhão deles, atravessar fronteiras e ter os seus direitos reconhecidos nem sempre acontece. O motivo? São pessoas com deficiência.
Para conseguirem ter acesso a benefícios como gratuidade, bilhetes a preço reduzido ou prioridade no acesso, estas pessoas precisavam de mostrar o certificado ou cartão que comprovasse a sua deficiência, emitido no seu Estado-membro, e esperar que este fosse reconhecido como uma prova oficial, o que nem sempre se revelava uma tarefa simples. O novo cartão europeu da deficiência quer garantir que a livre circulação das pessoas com deficiência é assegurada em todos os países da UE.
“Nunca tive nenhuma situação em que o facto de não ter o cartão me impedisse de fazer algo”, começa por explicar Catarina Oliveira, que ficou paraplégica aos 27 anos após sofrer uma mielite transversa, ou seja uma inflamação na medula óssea. “Infelizmente, há imensas fraudes de pessoas que querem aproveitar-se e fingem que têm uma deficiência”, por isso, quando visitou Paris houve locais em que lhe foi pedido um comprovativo. “Embora eu tenha uma deficiência visível, eu podia efetivamente estar a mentir e não precisar da cadeira de rodas para nada e também não me iam estar a pedir para levantar”, conta Catarina, que admite que nessa situação um cartão oficial e reconhecido em todos os Estados-membros teria sido muito útil, ao permitir “transpor de um país para o outro o que é que é a nossa deficiência”.
O cartão também vai permitir maior agilidade devido ao duplo formato: físico e digital. “Para Paris, eu fui totalmente desprevenida no sentido de que se alguém me pedisse o atestado em papel, eu não o tinha. O meu atestado em papel original está guardadíssimo em casa, o que eu tenho é um atestado digitalizado no e-mail”, explica Catarina ao referir-se ao Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, o comprovativo da deficiência em Portugal.
Além de servir de prova, o objetivo deste cartão é assegurar que, durante uma viagem ou uma deslocação por um curto período de tempo, a pessoa com deficiência tem os mesmos direitos específicos e vantagens de um residente daquele Estado-membro. Entre 2016 e 2019, este cartão foi colocado à prova num projeto-piloto em oito países: Bélgica, Chipre, Estónia, Finlândia, Itália, Malta, Roménia e Eslovénia. Após esta experiência, 63% dos titulares do cartão considera que participou mais atividades culturais e de lazer e mais de 35% disse que a sua deslocação ao estrangeiro aumentou.
Os resultados positivos desta iniciativa conduziram a Comissão Europeia em setembro de 2023 a apresentar uma proposta para criar um cartão europeu de deficiência e para melhorar o cartão europeu de estacionamento. “Isto tem um impacto muito grande na nossa vida prática porque nós atualmente não sabemos o que são fronteiras”, afirma Diana Reis, criadora do projeto nas redes sociais ‘Fora dos Padrões’, onde desmistifica a paralisia cerebral.
A jovem, que sofre desta doença, esteve de Erasmus em Itália, onde lhe pediam o cartão por este país ter integrado este projeto-piloto. “Levei o meu atestado médico de incapacidade multiusos, e mostrava-o lá, mas aquilo não tinha grande valor”, conta Diana. As autoridades comparavam o nome do atestado com o do cartão de cidadão e confirmavam se era um documento oficial, “depois assumiam que estava a dizer a verdade, mas era muito por boa vontade deles”.
Deficiência vai ser reconhecida independentemente do país em que o cidadão estiver
Os requisitos para a atribuição do documento que confirma a deficiência permanecerão iguais, com cada Estado-membro responsável por definir os critérios para a atribuição do comprovativo. A novidade é a uniformização do reconhecimento do estatuto de pessoa com deficiência, o que será um ato importante para os cerca de 30 milhões de cidadãos europeus que têm deficiência reconhecida.
A par desta diretiva, também haverá um novo cartão europeu de estacionamento para pessoas com deficiência. Os cartões nacionais vão ser substituídos por um único em toda a UE, para evitar uma situação recorrente em que as autoridades estrangeiras não reconheciam os cartões nacionais como sendo verdadeiros. “Muitas vezes, as autoridades em determinados países não reconhecem aquele dístico, ou seja, olham para o dístico e acham que aquilo não é o dístico real. Eu já recebi, muitas vezes, mensagens de pessoas que estavam noutros países da Europa e receberam multas, [mesmo] estando com o dístico lá”, exemplifica Catarina Oliveira.
Novo cartão europeu de estacionamento para pessoas com deficiência
União Europeia
Para prevenir e evitar a fraude, o cartão europeu de deficiência incluirá uma fotografia do beneficiário, nome, data de nascimento, número de série do cartão e data de validade. Prevê-se que o processo seja simplificado e realizado online, embora a emissão dos cartões seja da responsabilidade de instituições nacionais.
O reconhecimento em toda a UE vai permitir tanto a Catarina como a Diana ou qualquer outra pessoa com o estatuto de deficiência reconhecido ter acesso aos benefícios de cada Estado-membro, como redução do preço ou gratuidade nos transportes, eventos culturais ou desportivos. Em alguns casos, estes direitos estendem-se até ao acompanhante da pessoa com deficiência.
Cartão Europeu de Deficiência
União Europeia
“Nós temos, tal como todos os outros cidadãos europeus, o direito à livre circulação, mas ao mesmo tempo esse direito à livre circulação ficava condicionado porque eu tinha prioridade numa fila, ou desconto num bilhete num ponto turístico”, mas “só me davam esse desconto ou só me deixavam passar à frente se eles quisessem”, afirma Diana, que considera que este novo cartão vai colmatar uma falha no direito de livre circulação.
Aprovação do cartão foi um passo “histórico”, “decisivo e simbólico”
“Há quinze anos que as pessoas com deficiência lutam por esta legislação”, disse Lucia Ďuriš Nicholsonová, eurodeputada eslovaca e relatora desta diretiva, que foi aprovada no plenário, em abril, que encerrou este mandato do Parlamento Europeu (PE). “É um passo no sentido de cumprir o compromisso assumido no Tratado da União Europeia de assegurar a livre circulação a todos os europeus, e não apenas aos que são saudáveis ou ricos”, afirmou durante a votação final.
Também o eurodeputado português João Albuquerque (PS), que foi relator sombra nesta diretiva, disse que este era um passo “histórico”, “decisivo e simbólico”. Durante as declarações finais, assegurou ainda que “a aprovação do cartão europeu das pessoas com deficiência e do cartão de estacionamento para pessoas com deficiência é tão só e apenas o reconhecimento de um princípio de igualdade, de que não há cidadãos de primeira, nem cidadãos de segunda”.
José Gusmão, eurodeputado português pelo Bloco de Esquerda e relator sombra, considerou que o cartão europeu de deficiência “vai assegurar um princípio elementar da vida independente que é o acesso à mobilidade”. “Mas precisamos também de assegurar que, em todos os Estados-Membros, esses serviços, essas instalações, esses transportes, estejam muito mais adaptados do que estão ainda hoje”, alertou.
Antes da aprovação final, Catarina Oliveira foi convidada por João Albuquerque para assistir à votação da Comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais em janeiro, que aprovou o relatório por unanimidade e permitiu que seguisse para a fase de trílogos, reuniões entre o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu para atingir um consenso antes da votação final. A votação por unanimidade criou um momento “muito alegre por a aprovação ter sido inequívoca” e essa felicidade “sentiu-se na sala”, descreve a jovem conhecida nas redes sociais como ‘Espécie Rara sobre Rodas’.
Quando partilhou com os seus seguidores que o cartão europeu de deficiência se iria tornar uma realidade, Catarina sentiu que havia um enorme desconhecimento sobre esta diretiva. Uma situação que não difere da sua experiência em comunicar sobre outras leis quer europeias quer nacionais. “Há uma grande iliteracia no que diz respeito aos nossos direitos enquanto pessoas com deficiência”, uma vez que “a informação não é veiculada, muitas vezes, de uma forma acessível e sobretudo de uma forma de uma forma ampla”.
“É uma situação que me revolta bastante porque sinto que eu também não consigo chegar a todos os lados, portanto, eu não consigo informar toda a gente que me pede informação e muitas vezes encaminho para manuais ou para entidades, mas sinto que às vezes era preciso que esta informação chegasse de uma forma mais abrangente a quem realmente dela necessita”, confessa.
Um sentimento partilhado por Diana Reis, que sente que a informação nem sempre alcança a comunidade. No caso desta diretiva, a dúvida que mais lhe colocam é se este cartão vai substituir o atestado médico de incapacidade multiuso. “Não vai, vai ser um complemento para ser utilizado fora e também não vai substituir o cartão europeu de saúde”, esclarece.
Prazo demorado e a transposição para a legislação nacional são os principais problemas apontados
Esta melhoria na livre circulação de pessoas com deficiência só vai ser totalmente concretizada em 2027, o prazo limite estabelecido para os Estados-membros transporem esta diretiva para a sua legislação e começarem a emitir estes cartões. Diana afirma que esta lei “foi uma conquista, mas a efetivação desta medida em cada um dos Estados-membros vai demorar” e ao tratar-se de uma diretiva, os países da UE têm “um espaço muito maior de conformação dentro do território nacional”.
Também Catarina Oliveira aponta alguns possíveis obstáculos como a aplicação deste cartão estar dependente de como cada Estado-membro avalia a deficiência. Em Portugal, o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso confirma o grau de incapacidade do detentor deste documento e, consequentemente, quando a percentagem é igual ou superior a 60%, considera-se que se trata de uma pessoa com deficiência. Exemplifica que no caso de uma pessoa com autismo a quem foi atribuída uma percentagem inferior a 60% e, como tal, não tem acesso ao cartão europeu, não terá prioridade numa situação em que esteja numa fila para um museu, onde está sujeita a uma sobrecarga sensorial.
Durante a votação final, Lucia Ďuriš Nicholsonová, relatora da diretiva, assegurou que, após um ano da aplicação destes cartões, a Comissão vai avaliar a situação para decidir que novas medidas são importantes para melhorar a mobilidade.
Para Catarina, era crucial que o próximo Parlamento Europeu discutisse de que forma é reconhecida a deficiência em cada país da UE. “A deficiência não pode ser única e exclusivamente resumida a um atestado médico, porque a deficiência é muito para além do que isto. Uma pessoa com deficiência é uma pessoa que tem, de facto, uma incapacidade, mas essa incapacidade está em interação com o meio onde ela circula. E, portanto, eu posso não ter uma incapacidade atestada superior a 60%, mas ter, sim, uma deficiência à luz do modelo dos direitos humanos e à luz da Convenção, de Direito da Pessoa com Deficiência”, defende.
Já Diana considera que é importante atingir uma maior representação das pessoas com deficiência no PE. Em conversas com amigos e os seus seguidores nas redes sociais, repara que a falta de representatividade cria uma distância nestes eleitores que não se reveem no PE. “Legislar sobre estas questões e perceber quais são as falhas ao nível da inclusão é muito mais eficaz tendo alguém que passa por isso. Não quero dizer que só uma pessoa com deficiência pode legislar sobre questões de deficiência, mas, de facto, essa representatividade ajudaria, de alguma forma, a que as pessoas e estes assuntos tivessem, por si só, mais visibilidade”, diz.
“Estar na Europa já me traz aqui alguns benefícios enquanto cidadã com deficiência” e a União Europeia “tem um impacto positivo na minha vida, no sentido de achar que no Parlamento se discute e se fala sobre muitas coisas relacionadas com a deficiência”, diz Catarina, que no entanto alerta que “continua a haver muito a fazer”.