Quando se pensa nos mercados culturais e criativos, nem sempre a primeira resposta remeterá para videojogos. No entanto, este é um dos mercados em maior crescimento, com um valor de lucros totais estimados na Europa de 24,5 mil milhões de euros em 2022, segundo a associação ‘Video Games Europe’. Além destes lucros, que incluem valores como a venda de jogos ou subscrições, os videojogos transformaram o entretenimento, ao deixarem de estar unicamente no terreno das consolas e entarem no universo cinematográfico ou na criação de competições.
Se este setor for analisado a uma escala mundial, em 2022, os videojogos geraram cerca de 169,4 mil milhões de euros, enquanto a indústria cinematográfica atingiu cerca de 24 mil milhões em lucros de bilheteira, o mesmo valor alcançado pela indústria musical. Feitas as contas, os jogos digitais alcançaram mais do dobro dos lucros da indústria cinematográfica e musical juntas.
É devido a esta escala de importância que o Parlamento Europeu (PE) tem dado passos para proteger o setor, que na União Europeia (UE) emprega mais de 110 mil pessoas. Uma das estratégias trata-se de estimular a competitividade e apoiar os produtores europeus de videojogos para desenvolverem videojogos narrativos e experiências imersivas interativas através de fundos do projeto Europa Criativa.
Apoios financeiros de Bruxelas permitem retirar videojogos da gaveta
Criada em 2003, a empresa de audiovisual Beactive quis marcar a diferença ao unir múltiplas plataformas na conjugação de conteúdos e criação de uma experiência mais abrangente e interativa “do que um simples filme que nasce e morre numa sala de cinema”. Com o objetivo de criar histórias distintas do molde tradicional, começaram a aventurar-se no mundo dos videojogos como forma de complementar os filmes e séries que produziam.
Em 2016, decidiram criar ‘Journey to New Atlantis’, um jogo exclusivo destinado a crianças entre os oito e os 12 anos, sobre a jornada de dois irmãos num mundo pós-apocalíptico sem água em que procuravam encontrar uma terra chamada ‘Atlantis’, um oásis com este recurso natural e que pode salvar o avô, que está doente. Um dos motivos que levou à criação do jogo foi a vontade em ensinar a reciclagem às crianças, por isso, ao longo do jogo as personagens têm de reciclar para conseguirem obter água.
“Em Portugal nós não temos tradição, não temos apoio, não temos financiamento, não temos nada, e tendo em conta a dimensão do nosso mercado, seria impossível aventurar num projeto com estas características sem um apoio financeiro da Europa Criativa”, diz Nuno Bernardo, fundador da Beactive.
Esta dificuldade de rentabilização intensifica-se ainda mais quando se trata exclusivamente da indústria dos videojogos. “É muito difícil porque é [uma indústria] muito saturada e apenas um grupo muito reduzido de videojogos captam a atenção e geram receitas”, explica o fundador da empresa. A União Europeia conta com cerca de 4.600 empresas de videojogos, das quais mais de 80% são pequenas empresas com menos de 10 funcionários, aponta o relatório ‘European Media Industry Outlook’ realizado pela Comissão Europeia.
Para ajudar esta indústria a desenvolver-se e a tornar-se mais competitiva no mercado global, o Parlamento Europeu propôs uma série de medidas, cujo objetivo é que sejam transformadas numa futura legislação. Entre as propostas estava o incentivo à colaboração entre o setor dos videojogos e outras indústria para aumentar a inovação e benefícios sociais, devido ao seu uso em contexto escolar ou, por exemplo, para estimular cognitivamente as pessoas com demências.
Relativamente ao ‘Journey to New Atlantis, o fundador da empresa afirma que foi necessário recorrer ao apoio de Bruxelas porque sabiam que nunca iriam vender em número suficiente para cobrir os custos de produção e, devido à sua função pedagógica, o jogo seria oferecido às escolas, ao invés de o venderem. “Do ponto de vista financeiro, talvez não seja a coisa mais atrativa, [mas] nós temos essa facilidade porque o nosso negócio não é exclusivamente dos videojogos”, diz. Por este motivo, Nuno Bernardo considera que seria útil se existisse um mecanismo para facilitar uma parceria com instituições de educação, que lhes permitiria desenvolver mais conteúdos pedagógicos, como é o caso do videojogo ‘New Guardian’, ainda em desenvolvimento, que também beneficiou do apoio da UE e se centra num jovem que sofre de bullying.
Uma estrela portuguesa dos videojogos que não viu oportunidades para ficar na Europa
“Desde criança queria algo na área da multimédia. Não sabia se era jogos, se era filmes, queria fazer banda desenhada”, começa por explicar Luís António. Licenciou-se em design de comunicação na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e após terminar o curso, enviou currículos para várias empresas, entre as quais a ‘Rockstar Games’, uma produtora norte-americana de videojogos, que lhe ofereceu uma vaga no estúdio que tem em Londres, no Reino Unido.
Ao fim de três anos, quis experimentar algo novo e aceitou uma oferta de emprego da Ubisoft, uma empresa francesa de videojogos, no seu estúdio no Quebec, no Canadá, onde chegou a ser diretor de arte. “A Ubisoft, na altura, queria experimentar e fazer coisas novas, enquanto a Rockstar estava mais: ‘vamos fazer umas coisas deste género, sempre desta direção, muito precisa’”, diz, ao referir o motivo que o conduziu a realizar a mudança.
Entretanto, mudou de rumo e decidiu trabalhar no videojogo independente ‘The Witness’. “Uma pessoa nunca diria que não lê livros ou que não vê filmes, mas ainda estamos confortáveis em dizer que não jogamos jogos, porque vemos os jogos como uma coisa para passar o tempo. Mas eu vejo jogos como uma forma de comunicar e de exprimir e de crescer com a interatividade. E estas empresas [Ubisoft e Rockstar] não estavam a fazer isso. Foi isso que me fez ir procurar pessoas que pensavam como eu na indústria dos jogos”, explica.
Foi este sentimento que o motivou a ser produtor independente de videojogos. Neste percurso já conquistou enormes sucessos, como o videojogo ‘12 minutes’, lançado em 2021, que acumulou múltiplas críticas positivas da indústria e dos próprios jogadores, tendo inclusivamente vencido o prémio de melhor jogo independente no E3, um dos maiores eventos de videojogos do mundo. Neste jogo, que conta com Willem Dafoe, James McAvoy e Daisy Ridley enquanto vozes das personagens, o jogador toma decisões para tentar libertar um homem preso num loop temporal de 12 minutos.
Luís António acredita que se tivesse ficado em Portugal nunca teria evoluído tanto nesta profissão. Durante largos anos Portugal não tinha nenhuma licenciatura dedicada aos videojogos, o que o impedia de criar um estúdio devido à falta de pessoal qualificado.
Atualmente, considera o panorama nacional melhorou, e confessa que gostaria de regressar a Portugal e abrir o seu próprio estúdio de videojogos, mas a falta de apoios governamentais continua a ser um dos maiores obstáculos. No Canadá, Luís António explica que recebeu um subsídio governamental para criar o seu novo videojogo e com o qual conseguiu contratar uma equipa, por o governo pagar 30% do salário de cada funcionário. Além de tido apoio governamental para perceber os passos necessários para abrir uma empresa, foi informado sobre todos os apoios existentes e disponibilizaram um advogado de forma gratuita.
Para o produtor, este mecanismo foi muito útil; defende que esta seria uma boa estratégia para implementar na União Europeia. Um passo que o PE recomendou, ao propor a criação de uma entidade que funcionasse em parceria entre Bruxelas, governos nacionais e associações profissionais de videojogos, para ajudar as empresas a perceber a legislação, além de disponibilizar apoio sobre as regras de proteção do consumidor, de privacidade, entre outras legislações.
A dificuldade na captação de talentos é um dos maiores entraves no crescimento do setor. Cerca de 40% das empresas da UE afirmam ter dificuldades em recrutar os profissionais necessários e 76% diz que há uma escassez nas competências técnicas, de acordo com a associação ‘Video Games Europe’. Uma situação comprovada por Luís António, que gostaria de estabelecer uma parceria com um estúdio português, mas ainda não encontrou o “talento” que precisa. Para mitigar este problema, o PE definiu uma série de estratégias que podem ser implementadas para aproximar as empresas das instituições de ensino para colmatar as falhas.
A possibilidade de criar um arquivo europeu de videojogos
Desde os mais novos até aos mais velhos, são vários os europeus que já tentaram a sorte num videojogo. De jogos de corridas, simulação da vida real até ao mistério, as escolhas são muitas e nas mais diferenciadas plataformas. Esta variedade garante um lugar para todos os gostos, por isso mesmo, mais de metade dos europeus entre os 6 e os 64 confessa jogar videojogos, sendo a idade média dos jogadores 32 anos, de acordo com o relatório de 2022 da associação ‘Video Games Europe’.
Percentagem de ‘gamers’ por faixa etária
Ana Guerra é uma das muitas jogadoras regulares e atualmente transmite a sua jornada pelos videojogos através de streams (transmissão em direto em vídeo enquanto joga através da plataforma Twitch). “Eu sempre fui gamer desde pequenina, talvez desde os quatro, cinco anos que jogo, mas nunca tinha visto o gaming como uma área profissional para mim”, explica.
Quando terminou a licenciatura em marketing, ambicionava trabalhar numa grande empresa tecnológica. Candidatou-se à Microsoft, que a contratou para trabalhar na comunicação e relações públicas da Xbox, a marca de videojogos da empresa. Daí partiu para a GOATPixel, uma agência de comunicação de gaming e esports, onde esteve durante quatro anos.
Do contacto que teve com a indústria percebeu que a falta de orçamento é um dos maiores obstáculos. “Isso faz com que muitas vezes ou não se consiga arranjar as melhores pessoas ou quando finalmente começas a ter pessoas formadas na área e que são boas, muitas vezes vão trabalhar ou para outras indústrias ou para a indústria do gaming lá fora”.
Além dos problemas na retenção e formação de talentos, existe outro aspeto que prejudica o setor: a perda de videojogos devido a evolução tecnológica. Quase 90% dos videojogos ficaram indisponíveis com o passar dos anos, segundo dados da União Europeia. Por este motivo, o PE quer “facilitar a salvaguarda de videojogos como património cultural” através de uma diretiva que impõe a preservação deste património facilitada por museus, projetos de conservação e associações.
Uma estratégia aplaudida por Ana Guerra, que explica que o problema vai além da perda de arquivo. “Hoje se tu quiseres jogar o primeiro jogo Pokémon, que saiu para o primeiro Game Boy”, é uma tarefa complexa porque “não só não podes comprar de forma física, como o jogo também não está disponível digitalmente”. A solução é utilizar um emulador, um programa que simula um Game Boy, e depois recorrer a um ROM, que simula o jogo. Contudo, para criar as ROMs não são pagos os direitos daquele jogo e “por outro lado, os jogos não estão disponíveis de nenhuma outra forma”.
Apesar das várias recomendações, há instrumentos já implementados pela UE que impactam a vida de quem joga, como a fácil compreensão da configuração e instruções, a garantia de que as funcionalidades publicitadas estão, de facto, disponíveis no jogo e a possibilidade de utilizar as assinaturas online em viagem na UE.
Outra proteção conferida pela União Europeia trata-se do sistema de classificação PEGI (Pan-European Game Information) em vigor desde 2003. Este mecanismo classifica os videojogos ao indicar a faixa etária mínima recomendada e identifica os conteúdos que estão contidos nos jogos, como violência, conteúdo sexual, compras no jogo ou linguagem obscena.
Ana Guerra acredita que cada vez mais será uma recomendação mais consultada pelos pais. “A geração atual de pais e eu, que também eventualmente hei-de ser mãe, têm muito mais presente isso porque sabem, efetivamente, o que é que são os jogos”, diz.
Parlamento Europeu também quer proteger os esports
Com a evolução dos videojogos, esta área foi evoluindo e atualmente há competições entre jogadores de vários países, os chamados esports. Armando Vale começou o percurso nestas competições em 2016 e desde aí já acompanhou vários torneiros e passou por muitos projetos, entre os quais foi selecionador nacional de futebol virtual.
Embora exista interesse em acompanhar estas competições, como foi o caso da final de 2019 do campeonato mundial de League of Legends, um dos maiores jogos em esports, que arrecadou cerca de 100 milhões de espectadores, não existe quase legislação para proteger os jogadores nem para regulamentar as competições.
De forma a reconhecer os esports, o PE aprovou um relatório em 2022 em que incentiva a atribuição de mais fundos, tanto à indústria dos videojogos como a estas competições, bem como a criação de mais torneiros de esports no espaço europeu, entre outras propostas.
Uma das propostas tratava da profissionalização de quem participa nas competições ao criar um “estatuto dos praticantes profissionais de desportos eletrónico”. Armando Vale, que é atualmente treinador da modalidade, considera que seria uma medida fundamental. “Nós temos os jogadores que são pagos para tal, mas em Portugal não existe um reconhecimento de que eles são profissionais de esports”, numa área em que “pode ser difícil vingar” devido às escassas vagas nas finais dos torneios.
A par desta profissionalização, o PE quer criar um código de conduta para “promover os valores europeus nas competições de desportos eletrónicos” e tonar os esports “divertidos, justos e apreciados pelos jogadores e organizadores de todo o mundo, num ambiente aberto e inclusivo”.
Após ter acompanhado inúmeros torneiros, Armando Vale acredita que este é um aspeto que poderia fazer uma diferença positiva. A regulação das competições precisa de “garantir a independência e a idoneidade e criar standards básicos mais relacionados com os próprios jogadores e participantes”. Trata-se até de uma questão de conferir “um ar mais sério às competições”, para que haja consequências se alguém desistir a meio de uma competição, por exemplo.
De forma a criar um espaço saudável e proteger estes jogadores, o Parlamento quer ainda que a promoção deste desporto eletrónico seja feita a par de um incentivo de um estilo de vida saudável com deporto físico ou interações sociais presenciais.
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Armando Vale que já acompanhou vários jogadores alerta que é preciso distinguir o vício do tempo gasto na preparação dos torneios à semelhança dos desportos de alta performance. Ainda assim, reforça que é necessário perceber quais são os riscos, identificá-los e perceber como os mitigar.
“Ainda falta muito [para melhorar a situação], porque à semelhança de todos os outros mercados, nós acabamos por chegar mais tarde e acabamos por viver com um atraso relativo à Europa e à realidade mundial. Ainda que eu acho que estejam a dar certos passos na direção certa”, diz o treinador de esports.