António Guterres juntou-se a vários ministros, dirigentes, outros políticos e economistas no 60.º aniversário da Conferência das Nações Unidas (UNCTAD, na sigla em inglês), que coloca em debate os desafios do desenvolvimento durante três dias, em Genebra.
António Guterres e Xanana Gusmão foram duas das vozes escolhidas para pensar um novo rumo para o desenvolvimento, que domina os trabalhos do 60.º aniversário da Conferência das Nações Unidas (UNCTAD, na sigla em inglês) ao longo de três dias, no Palácio das Nações, em Genebra.
Citando o primeiro secretário-geral da instituição da ONU, Raúl Prebisch, economista argentino, o político português afirmou que a “UNCTAD não pode ser neutral nos problemas de desenvolvimento, tal como a Organização Mundial de Saúde [OMS] não pode ser neutral na malária”, defendendo que o seu compromisso “é mais relevante do que nunca”.
“Temos de canalizar a coragem e a sabedoria daqueles que construíram a UNCTAD para reimaginar um mundo em que o comércio seja uma força de prosperidade partilhada – e não de rivalidade geopolítica, onde as cadeias de abastecimento globais sejam uma fonte de inovação ecológica e de ação climática – e não danos ambientais, e o desenvolvimento sustentável é um objetivo central, não uma reflexão tardia”, defendeu.
Crescimento das desigualdades, novas divisões geopolíticas, crise climática, listou Guterres, alertando que “novos e prolongados conflitos estão a ter um efeito de arrastamento em toda a economia mundial”.
“A dívida mundial disparou enquanto os principais indicadores de desenvolvimento, incluindo a pobreza e a fome, regrediram. A arquitetura financeira internacional foi exposta como ultrapassada, disfuncional e injusta. Não conseguiu criar uma rede de segurança para os países em desenvolvimento atolados em dívidas”, continuou.
Nas palavras do antigo primeiro-ministro português, o “comércio tornou-se uma faca de dois gumes”, funcionando, simultaneamente, como “uma fonte de prosperidade e de desigualdade, de interligação e de dependência, e de inovação económica e de degradação ambiental”.
Dirigindo-se à secretária-geral da UNACTD, Guterres sublinhou o seu “papel essencial” nesse quadro, “identificando e trabalhando para colmatar lacunas e discrepâncias no sistema, propondo soluções pragmáticas e baseadas em provas”.
“O mundo não se pode dar ao luxo de se dividir em blocos rivais. A implementação dos ODS e a necessidade de garantir a paz e a segurança tornam essencial a existência de um mercado global e de uma economia global, em que não haja lugar para a pobreza e a fome. O FMI estima que o aumento das restrições ao comércio internacional poderia reduzir a produção económica mundial em mais de sete biliões de dólares americanos a longo prazo. Está a tornar-se claro que precisamos também de uma nova arquitetura das finanças internacionais, da fiscalidade e da governação digital e de uma nova visão sobre como medir o progresso, como promover o comércio sul-sul e como garantir a estabilidade num mundo multipolar”, analisou, apontando para a Summit of the Future, que vai decorrer em Nova Iorque, em Setembro, onde se procurará obter “progressos concretos e uma dinâmica política” sobre aquelas questões.
Do lado de Timor-Leste, Kay Rala Xanana Gusmão sublinhou que a UNCTAD “tem estado na linha da frente das mudanças económicas e geopolíticas, lutando por um sistema económico mais justo”. No início, “desafiou o sistema comercial mundial com a intervenção no mercado de produtos de base. Na década de 1980, em resposta ao domínio emergente da economia neoliberal, a Conferência mudou o seu enfoque para investigação, cooperação para a construção e assistência técnica”.
Lançando farpas ao Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), o histórico líder de Timor-Leste acusou as instituições de “falência moral e cegueira ideológica” com os “programas de ajustamento estrutural das décadas de 1980 e 1990”. “As cicatrizes destes programas permanecem na nossa região do Sudeste Asiático”, continuou.
Xanana Gusmão recordou, ainda, que “foi a análise da UNCTAD que identificou os níveis de dívida insustentáveis e as fraquezas estruturais do
sistema financeiro internacional antes da crise financeira global de 2007. ” Mais recentemente, durante a resposta internacional à Covid-19,
ajudou a expor as grandes disparidades no acesso às vacinas e destacou os desafios enfrentados pelo mundo em desenvolvimento”, salientou.
“Lamentavelmente, no nosso país, as instituições financeiras internacionais têm sido rápidas a dar-nos lições”, acusou.
Recordando as palavras de António Guterres na recente Conferência dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento, que decorreu em Antígua e Barbuda, em maio, “as instituições globais não podem ser eficazes se não forem representativas”.
Na abertura da conferência, Rebeca Grynspan, primeira mulher a liderar a UNCTAD, saudou Guterres pela “incansável defesa do multilateralismo”, como uma “luz orientadora” para a UNCTAD e para o sistema das Nações Unidas em geral.
“Há 60 anos, aqui em Genebra, nasceu uma ideia poderosa. Que das cinzas da guerra, e da complexa história do comércio, poderia ser escrito um novo capítulo. Um capítulo em que as desigualdades do passado não ditarão os termos do futuro. Esta ideia ambiciosa, juntamente com a criação do Grupo dos 77, foi o que deu origem à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Era simultaneamente uma rejeição e uma promessa. Uma rejeição do business as usual, da ideia de que a economia global em 1964 já era um campo de jogo equitativo, que as regras do jogo eram justas e equitativas”.
Segundo a antiga vice-presidente da Costa Rica, essas regras não só não eram justas na altura, como “não o são agora”. “Mas 1964 foi também uma promessa. Uma promessa de reconhecimento de que as nações recém-independentes, forjadas na luta do pós-guerra, tinham direito a um lugar à mesa, para negociar princípios comuns, acordos comuns, soluções comuns”, continuou.
Os painéis do primeiro dia do evento contaram, ainda, com Azali Assoumani, presidente das Comores, Andry Nirina Rajoelina, presidente de Madagáscar, Faure Essozimna Gnassingbé, presidente do Togo, Stephan Brunner, vice-presidente da Costa Rica, Odongo Jeje Abubakher, ministro dos Negócios Estrangeiros do Uganda, Celso Luiz Nunes Amorim, assessor chefe especial do presidente do Brasil, Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da Organização Mundial do Comércio (WTO, em inglês)
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
A primeira sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento teve lugar em Genebra, entre os dias 23 de março e 16 de junho, altura em que o Grupo dos 77 (G77) foi fundado. Em 1995, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu a UNCTAD como um órgão intergovernamental permanente.
JE presente no evento a convite da UNCTAD