As novas exigências de capital que o governo suíço quer impor aos bancos que tenham operações internacionais colocam em causa o papel do país no mundo, defende o líder do UBS. É o mais recente capítulo de um debate que não diz respeito apenas à alta finança mas também à própria identidade nacional helvética e à sua lendária neutralidade.
O sector financeiro tem sido, desde há dois séculos, um dos símbolos da Suíça. Os bancos helvéticos conquistaram a confiança dos ricos e poderosos de todo o mundo, devido às suas estritas regras de sigilo e confidencialidade, mas esse legado poderá estar em risco, à medida que o governo de Berna se vê forçado a colaborar com outros países no combate à fraude, à corrupção e ao branqueamento de capitais.
Por outro lado, a própria dimensão do sector, com bancos too big too fail, tem sido uma preocupação crescente das autoridades, sobretudo a partir de março de 2023, quando o Credit Suisse colapsou de forma estrondosa e acabou absorvido pelo rival UBS, numa operação coordenada pelo governo. Na esteira deste colapso, as autoridades pretendem fazer novas exigências de capital aos bancos que detenham operações internacionais, de maneira a reduzir o risco associado ao facto de existirem bancos grandes demais para a economia helvética. A proposta foi apresentada há dois meses pelo Ministério das Finanças suíço, tendo obtido o apoio do regulador bancário.
No caso do UBS, o maior banco do país e um colosso à escala global, estarão em causa exigências adicionais de capital na ordem dos 15 a 25 milhões de dólares (13,9 mil a 23 mil milhões de euros), uma quantia considerável que levou a que o CEO se pronunciasse esta semana contra aquilo que diz ser um ataque a um dos pilares centrais da economia da Suíça e do seu papel no mundo. Segundo Sergio Ermotti, a Suíça está mesmo em vias de perder para Hong Kong a sua posição de liderança na gestão de fortunas a nível mundial.
UBS: de salvador da pátria a inimigo público?
De acordo com o banqueiro, a área de gestão de fortunas do sector financeiro da região especial chinesa está a crescer 7,6% ao ano, enquanto a de Singapura cresce 9%. A manter-se este ritmo, disse, em 2027 Hong Kong terá superado a Suíça, que ficará relegada para o segundo lugar do ranking e enfrentará a forte concorrência de Singapura, que nessa altura já estará na terceira posição.
“Hong Kong, Singapura e os Estados Unidos estão a competir de forma agressiva – e a fazer grandes progressos – pela coroa que a Suíça tem na gestão de fortunas offshore“, disse o banqueiro na passada terça-feira, num discurso numa universidade em Lucerna, citado pelo “Financial Times”.
“Não podemos ser complacentes e pensar que será suficiente ter bancos locais que competem ferozmente a nível doméstico”, disse Ermotti na mesma intervenção, criticando os comentários “mal informados, populistas e criadores de medo” que existem “nos media, na política e na academia, que estão focados exclusivamente no perigo de ter um grande banco no nosso país”.
“Os centros financeiros estrangeiros iriam beneficiar se a Suíça limitasse a sua capacidade de manter uma presença significativa no estrangeiro. (…) Para manter a liderança da Suíça, o ecossistema financeiro e industrial nacional deve incluir uma posição relevante a nível global. Hoje, isso quer dizer o UBS”, defendeu na mesma intervenção, segundo o jornal britânico.
Os comentários do CEO do UBS seguem-se a outros que fez no mês passado, altura em que criticou o papel das autoridades na forma como foi feita a supervisão do Credit Suisse. “É especialmente confuso, se não extraordinário, ver muitas das pessoas que estiveram no comando ao longo dos anos dizerem que fizeram tudo corretamente em relação à gestão e à supervisão do Credit Suisse”, declarou o banqueiro a 15 de maio, após o anúncio do apoio do regulador à proposta do Governo, segundo o portal “Swiss Info”.
“14 meses após o resgate do Credit Suisse, estamos no meio de um debate intenso e muitas vezes superficial que questiona se o UBS é grande demais para a Suíça”, disse Ermotti na mesma ocasião, acrescentando: “Para ser honesto, é bastante surpreendente a rapidez com que o UBS passou a ser visto como um potencial problema futuro para o país, depois de ser considerado um salvador”.
Sigilo, neutralidade e identidade nacional
As declarações do líder do maior banco suíço ao longo destas semanas surgem na sequência de uma polémica em torno do peso que o sector financeiro tem na economia do país e do risco que colossos como o antigo Credit Suisse ou o UBS podem representar para um país cujo Produto Interno Bruto (PIB) ronda os 800 mil milhões de euros.
Segundo os números oficiais, os bancos e as seguradoras empregam mais de 200 mil pessoas e valem 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e são muitos aqueles que consideram que a economia helvética não pode continuar a depender tanto de um sector que dizem ser sobre-dimensionado. Com a integração do Credit Suisse, o UBS ficou com uma quota de mercado no mercado suíço na casa dos 40%, mas não é o único gigante do sector financeiro helvético. Seguradoras como a Zurich e Swiss Re são igualmente players de grande relevância a nível nacional e mundial.
A grandeza dos ativos que estão entregues à guarda da banca suíça também não deixa margem para dúvidas em relação ao que está em causa. De acordo com os dados oficiais, o país é líder mundial na gestão de patrimónios transnacionais, com uma quota de 25%. Os bancos helvéticos fecharam o ano de 2022 com 7,8 biliões de francos (cerca de oito biliões de euros) em depósitos e ativos sob gestão, abaixo dos 8,8 biliões do ano anterior, mas praticamente o dobro dos valores do início do século. Metade do montante confiado aos bancos suíços pertence a clientes e investidores estrangeiros (ver gráfico).
Fonte: Banco Nacional Suíço. Valores em milhares de milhões de francos suíços
A queda do Credit Suisse reforçou também as posições daqueles que defendem que, embora a Suíça figure nos rankings internacionais como um dos países menos corruptos do mundo, mantém um sector financeiro que está nos antípodas em termos de transparência e boas práticas. Em 2018, a organização não governamental Tax Justice Network chegou mesmo a considerar a Suíça como o país mais corrupto do mundo, devido às práticas do seu sector financeiro, que em seu entender facilitam a lavagem de dinheiro proveniente de práticas ilícitas a nível global.
Porém, está em causa a própria identidade nacional suíça, bem como aquela que foi a sua política externa ao longo dos últimos séculos. O papel da Suíça como porto de abrigo para as grandes fortunas mundiais está indissociavelmente ligado à neutralidade que mantém desde 1815, bem como ao processo de desenvolvimento que ocorreu desde o final do século XIX, ao ponto de hoje ser um dos países mais ricos do mundo.
A importância da banca para o país é, no entanto, anterior a tudo isso. O sigilo bancário suíço remonta ao início do século XVIII, quando as autoridades aprovaram uma lei que proibia a partilha de informação sobre clientes pertencentes às classes altas europeias. Segundo os historiadores, a burguesia mercantil dos cantões suíços compreendeu que a única forma de o pequeno país montanhoso conseguir prosperar numa Europa de grandes impérios era fazer da alta finança a sua arma, fazendo uso da sua posição geográfica e do terreno montanhoso para se tornar o refúgio das grandes fortunas do continente.
Porém, a geografia não explica tudo. A transformação da Suíça no porto de abrigo dos ricos e poderosos só foi possível devido à estrita política de neutralidade que o país mantém desde o final das Guerras Napoleónicas, que lhe permitiu passar quase incólume pelos conflitos e revoluções que desde então abalaram a Europa. A neutralidade tornou-se parte da própria identidade nacional suíça, ao ponto de o país apenas aderir às Nações Unidas em 2002.
A adesão a instituições internacionais e a crescente pressão por parte dos Estados Unidos e outros países, com vista ao combate à fraude, à evasão fiscal e ao branqueamento de capitais tem obrigado o governo de Berna a, pouco a pouco, desmantelar os mecanismos de sigilo que estiveram na base do sucesso do sector financeiro suíço. Desde 2017 que a Suíça tem colaborado com outros governos, divulgando informação sobre clientes dos seus bancos que não sejam residentes no país.