É citando Fernando Pessoa que José Tolentino de Mendonça recebeu o Prémio Pessoa 2023 esta quarta-feira, das mãos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e o CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão. Numa cerimónia que teve lugar na sede da Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa, e que contou também com a presença do seu CEO, Paulo Macedo, o cardeal e poeta construiu um discurso em que abordou o aumento da esperança de vida, a necessidade de “reabilitar” o lugar da comunidade, e a Inteligência Artificial como ferramenta de uma sociedade em mutação acelerada, que deve sempre, para ser sensata, estar ao serviço do humano.
O antigo cronista do Expresso iniciou a sua intervenção aludindo ao poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, trazido a propósito do exponencial aumento da esperança de vida verificada entre o tempo em que esses versos foram escritos e a atualidade. “O poema ganha em legibilidade quando se recorda que a esperança média de vida em Portugal, na década de vinte do século passado, era de apenas 35,6 anos”, e que o próprio Pessoa morreria aos 47, disse o antigo cronista do Expresso, para quem o prolongamento dessa expectativa de vida é a “construção mais extraordinária do nosso tempo”. Situada hoje nos 80 anos, esta duplicou no espaço de um século, ao ponto de estamos, pela primeira vez na História, em condições de sentar à mesma mesa seis gerações diferentes.
Importa “elaborar uma reflexão comum sobre este indicador, demográfico e de civilização, e sobre o que ele nos conta acerca dos pontos de força, resiliência e superação não de um indivíduo, mas de uma comunidade”, pois, recordou o cardeal, devemos o que somos “não a uma monódia individualista”, mas “a uma história comum”.
Ele não se esqueceu da frase de José Mattoso, o primeiro Prémio Pessoa – em 1987 -, na obra “Identificação de um País”: “mais do que exaltar a Pátria, interessa-me o relacionamento dos portugueses uns com os outros”. Porque, explicou Tolentino de Mendonça, “não basta alongar a esperança de vida”, mas questionar “qual é a realidade humana do encontro ou desencontro que entretecemos”.
“Como fazemos circular entre nós a curiosidade, o conhecimento e o afeto? Como nos reconhecemos? Como vencemos ou agravamos juntos as barreiras de incomunicabilidade, indiferença ou descarte? Saberemos transformar não em embaraço, mas em oportunidade todas as nossas diferenças? Saberemos consolidar alianças suficientemente fortes para se sobrepor ao deslaçamento ou à estéril polarização?”, perguntou.
Segundo ele, é urgente projetar uma sociedade que “privilegie a esperança e a deseje fraternalmente repartida, acessível a todos, protagonizada por todos”. E isso só será possível na medida em que a comunidade seja resgatada no seu papel crucial numa sociedade que se encontra “numa das mais impactantes transições epocais da sua história”. “Se há encruzilhada da história em que se pressente uma radical metamorfose das formas de habitar o mundo, a desestabilização do que até aqui conhecemos e a emergência de um inédito sistema societário é esta onde estamos”, sublinhou Tolentino, para quem o futuro não pode ser delegado “nas mãos de um processador de algoritmos”.
“As nossas sociedades tornar-se-ão diversamente inteligentes? É fundamental, então, que nessa viragem elas dependam das convicções e dos sonhos de comunidades sensatas e não de pilotamentos automáticos”, continuou. O cardeal madeirense, autor de meia centena de livros, afirmou o primado da “multímoda inteligência humana” naquilo que “torna possível em nós o espanto e a poesia, a generosidade, a gratidão e o perdão, a alegria, a compaixão ou o amor”. E se Álvaro de Campos originara a abertura do discurso, Alberto Caeiro – com a magnífica frase: “o amor é uma companhia” – acabaria por encerrá-lo.