Num artigo publicado no PÚBLICO a 1 de Março de 2024, Ana Teixeira Pinto dava conta da forma como o anti-semitismo está a ser instrumentalizado na Alemanha e como uma onda de perseguições e de cancelamentos vários tem vindo a acontecer naquele país. Nesse artigo, a crítica de arte falava da implementação de uma “política iliberal” cuja sintomatologia apesar de mais expressiva e com outra autorização pública no pós 7 de Outubro de 2023, se fazia já sentir antes. À cena internacional chegaram alguns casos, como o da Documenta de Kassel de 2022.
Mas a verdade é que, sob a bandeira de acusações de anti-semitismo, há uma política de apoio incondicional do Estado Alemão a Israel, e qualquer crítica a essa política é imediatamente classificada como perigosa e anti-semita. Na mira dos ataques estão todas as pessoas que publicamente manifestam uma posição contrária a esse apoio incondicional, mesmo que a crítica venha de pessoas da comunidade judaica.
Ernesto Oliveira também denunciou essa situação a 16 de Abril de 2024 no artigo Solidariedade com a Palestina e repressão: activistas enfrentam obstáculos na Alemanha e José Soeiro no artigo E agora, quem condena a censura e o cancelamento?, no Jornal Expresso de 17 de Abril de 2024, lembrando casos como o de Ghassan Abu-Sittah, de Yanis Varoufakis, ou de Nancy Fraser. São apenas poucos de muitos casos que se multiplicam no dia-a-dia da Alemanha.
O artigo Alemanha: democracia iliberal? é minucioso nas políticas do presente e aponta a historicidade das medidas ideológicas que se naturalizam hoje na Alemanha.
É importante a história ser lembrada, porque aquilo que hoje vivemos é, também, história. E o que está a acontecer hoje na Universidade Alemã é uma ameaça ao lugar da Universidade como um espaço de pensamento crítico, de dissenso e de liberdade. Sabemos que a Universidade nunca foi um lugar em que todas as vozes ou todos os corpos tenham tido lugar, ela sempre foi (e continua estruturalmente a sê-lo) um lugar de exclusões. Mas a Universidade não é monolítica e é o lugar que devemos preservar, apesar de tudo e a todo o custo, como o lugar para um pensar crítico sobre o mundo e para imaginar formas outras de solidariedade que possam transformar esse mesmo mundo e as suas desigualdades estruturais.
Foi pela defesa desse direito à crítica na Universidade que um conjunto de pessoas académicas assinou, em Maio último, uma carta aberta em suporte do direito de protesto por parte de estudantes nas Universidades de Berlim. Em causa estavam os protestos contra as políticas de apoio a Israel e a defesa do Estado e do povo palestiniano. Nessa carta, as pessoas signatárias defendiam que independentemente do acordo face ao objecto dos protestos, o direito ao protesto deveria ser garantido pelas Universidades e não alvo de violência policial e de punição. Apelavam a medidas de diálogo e à preservação das Universidades como lugares de crítica, afirmando que, enquanto docentes e instituições, apenas o diálogo aberto e engajado poderia responder ao cumprimento das suas responsabilidades sociais.
A carta aberta gerou imediatamente reacções do Ministério da Educação, afirmando a anticonstitucionalidade da mesma, e iniciou-se uma onda de perseguição e de “targeting”, com a comunicação social a alimentar esse mesmo movimento. Mas não ficou por aí. O Ministério da Educação Alemão considerou a punição pública das pessoas signatárias dessa carta, avançando com a possibilidade de cortes de financiamentos às pessoas envolvidas. O clima de medo em relação às suas posições e a futuros financiamentos é um resultado directo das políticas iliberais que se fazem sentir, hoje, na Alemanha. Neste momento, está a circular uma carta de apoio com as pessoas académicas e investigadoras que publicamente denuncia as acções da Ministra Federal da Educação.
As Nações Unidas acabaram também de publicar um Relatório sobre a Liberdade Académica e de Expressão nas instituições educativas e na secção de contributos da Academia o “Group of scholars working in German academic institutions” detalha a situação vivida até Fevereiro de 2024, sendo que a mesma tem escalado nos seus efeitos.
Se o que se está a viver na Alemanha é totalmente novo? Provavelmente não, mas hoje intensifica-se e permite uma das coisas mais perversas de todas. Como dizia Ana Teixeira Pinto, “mascarar o racismo como anti-racismo” e, com isso, autorizar e promover um discurso de ódio e uma impunidade e autoritarismo normalizados pelo Estado e que vêem na crítica ao genocídio, ou nas teorias e pensamento pós-colonial/decolonial alvos a enfraquecer. Se é apenas na Alemanha que estas políticas estão a acontecer? Sabemos bem que não. Basta olharmos para os Estados Unidos ou mesmo para o que acontece com os protestos de estudantes nas Universidades Portuguesas.
No horizonte, surge o fantasma do fascismo, talvez mais perto do que imaginado, talvez sempre lá e sempre à espreita, e que os recentes resultados eleitorais e composição actual do Parlamento Europeu também reflectem.