“Porque é que Deus precisaria da nossa ‘liberdade’ se, no fim, Ele só fica satisfeito com escolhas estritamente definidas?” Faltam poucos minutos para o final do videojogo quando a protagonista faz esta pergunta – a outra personagem, a si própria e a nós, jogadores –, com o tom de quem a guarda desde o início da jornada. Seguem-se três silêncios: o seu, o da outra personagem e o nosso. As peças alinham-se e percebemos, finalmente, ao que viemos.
Mas comecemos pelo princípio.
Indika foi escrito e realizado por Dmitry Svetlow, fundador do estúdio russo Odd Meter, responsável pelo desenvolvimento do jogo. Conta a história de uma freira ortodoxa, numa versão alternativa da Rússia no século XIX. Uma freira cuja voz interior é a do Diabo.
A meta é clara e o caminho linear: levar um objecto de um lugar para outro. Sem atalhos, itens secretos, vilões memoráveis ou grandes obstáculos. Quase tudo o que temos de fazer – fora um ou outro puzzle estrategicamente colocado – é caminhar por cenários quase desertos, enterrados em neve.
Os pontos que vamos somando ao acender velas ou a encontrar objectos não servem para nada – é o próprio jogo que o assume, em vários loading screens. Subindo de nível ou não, fica tudo na mesma: não ganhamos habilidades especiais nem roupas diferentes. Nada.
A ausência de quase tudo o que faz de um videojogo um videojogo tornará Indika, provavelmente, impermeável ao visitante comum. À monotonia quase sufocante que preenche a maioria das cinco horas de duração, o jogo vai buscar um dos seus trunfos. Escusando tudo o que é supérfluo, a atenção recai no diálogo – ácido, com nuances e provocador –, que serve de esqueleto para o desenrolar da acção (é ele mesmo a acção, na maior parte do tempo).
Somos mesmo livres de escolher o nosso caminho, se aprendemos desde sempre que alguns não devem ser percorridos? O jogo pergunta, nós ficamos a matutar, e avançamos. Talvez a resposta esteja mais adiante.
Nos longos silêncios que separam as intervenções das personagens, resolve-se um ou outro puzzle que permite continuar caminho. Paradoxalmente, é nestes momentos de maior acção típica que há a sensação de chegar a um intervalo. Sem diálogo, Indika parece ficar em suspenso.
Os puzzles mais memoráveis são, curiosamente, os mais enfadonhos. Descrevemos o exemplo de (spoiler alert) uma das primeiras missões do jogo: encher um barril com água de um poço.
Passa-se assim: a passo muito lento, levamos Indika até a um poço. Esperamos que o balde desça, fique cheio e volte a subir. Voltamos ao barril lentamente (o passo parece ainda mais lento do que antes), e despejamos a água. Reparamos que será preciso repetir a missão umas cinco vezes para encher o barril. Repetimos. Acabamos por conseguir encher o barril (finalmente!) e eis que chega uma outra freira e o entorna. E termina a missão.
Enchemo-nos de frustração e perguntamo-nos para que raio serviu tudo. E eis que nos bate: somos Indika, a personagem principal, e sentimos o que é suposto que ela esteja a sentir.
Não fosse a protagonista, a sua profundidade e a forma meticulosa como foi desenhada, e o videojogo provavelmente ruiria. Visualmente, Indika é só o que tenta parecer, uma freira como as outras todas. Mas sempre que conversa com Ilya, a outra personagem principal, ou tenta abafar o Diabo que lhe vive na cabeça, vão-se abrindo pequenas janelas para o seu verdadeiro eu.
Através desta voz demoníaca, revela-se o lado mais negro de Indika. O que pensa em sexo, que questiona Deus e que a leva, volta e meia, a episódios do seu passado (nunca relacionados com a Igreja). Por vezes, a voz torna-se demasiado alta e distorce o ambiente que a rodeia. Já não estamos envoltos em paisagens inertes de neve e destroços, tudo fica tingido em tons de vermelho. A solução para tudo voltar ao sítio? Rezar. No entanto, sublinhe-se, há trechos de caminho que só se conseguem atravessar deixando a voz do Diabo gritar. As conclusões ficam para cada um.
Fora da consola ou do computador, a história que envolve Indika não é menos trágica. Um ano depois de começar a ganhar vida, grande parte da equipa do estúdio russo Odd Meter, que fez o jogo, viu-se obrigado a abandonar o país na sequência da invasão da Ucrânia, como escreve a Polygon. A dúvida em relação à continuidade do projecto só se erradicou com a entrada em cena da editora polaca de videojogos, 11 bit studios, que se disponibilizou para levar Indika até ao mercado.
Sob uma máscara de serenidade e inércia, o videojogo é uma crítica incisiva à resignação e às verdades adquiridas. Um testemunho de audácia e uma demonstração, sem espalhafatos, que um videojogo não se esgota no entretenimento que proporciona. Por vezes, o objectivo é só levantar questões. As respostas? Cada um de nós que dê as suas. Quem diz que um videojogo não pode ser arte?
Indika pode ser jogado na XBox Series S e X, na PlayStation 5 (a versão que o PÚBLICO experimentou) e no computador. Nas lojas digitais de ambas as consolas e na Steam, o preço ronda os 25 euros.