Escrevo após ver o alinhamento de um noticiário televisivo que me abalou profundamente. A primeira notícia referia o recente pacote espanhol de ajuda à Ucrânia, no valor mil milhões de euros, logo seguido de uma revisão dos sucessivos pacotes ocidentais com o mesmo fim e, por fim, de uma reportagem feita na zona de Kharkiv, onde se descrevia o progressivo esgotamento físico e psicológico e a desmotivação do exército resistente ucraniano, a falta de meios e o tempo longo que estes levam a chegar ao terreno, e ainda o crescente ceticismo da opinião pública ocidental.
É, para mim, óbvio que uma vitória militar ucraniana é impossível face à matança provocada pelo agressor russo que tem dizimado milhares de soldados ucranianos (e populações civis). O esforço de guerra é descomunal, a capacidade de recrutamento cada vez mais difícil, e a carência de recursos bélicos é cada vez mais evidente.
Será legítimo que os líderes ocidentais “empurrem” o povo ucraniano para este sacrífico sobre-humano, fornecendo meios materiais para uma guerra para a qual não cede meios humanos, como chegou a ser proposto pela França? Ideia que, aliás, foi prontamente abandonada, o que demonstrou claramente que, no momento em que, por absurdo, houvesse uma decisão política de envolvimento de meios humanos, as populações rapidamente a derrotariam. E isto porque, atualmente, o Ocidente não luta por causas, como hipocritamente é anunciado, luta pela comodidade e pela riqueza que alcançou, nem sempre com meios legítimos. Recorde-se que EUA, França, Alemanha e Itália, a par da Rússia, China e Brasil são os maiores exportadores mundiais de armas que, neste momento, alimentam vários conflitos, alguns de uma escala de crueldade e com um número de vítimas muito superiores aos mediatizados (Ucrânia e Israel-Hamas). O mesmo Ocidente, grande defensor das grandes causas, mas que se mostra cobardemente silencioso relativamente ao genocídio em Gaza.
O agressor russo ultrapassou, como se sabe, as sanções económicas impostas pelo Ocidente. Após o impacto inicial, procurou outros poderosos parceiros e contou até com a conivência de várias empresas ocidentais (algumas fictícias) que, através de intermediários ou utilizando sistemas financeiros alternativos, puderam continuar a vender componentes e tecnologia dupla, usada pelo exército russo.
Os medíocres dirigentes ocidentais falharam dramaticamente, aquando da primeira agressão russa – anexação da Crimeia em 2014, com clara violação do direito internacional e dos acordos estabelecidos, incluindo o Memorando de Budapeste de 1994, no qual a Rússia, junto com outros países, garantiu a integridade territorial da Ucrânia em troca da renúncia às suas armas nucleares. Assistiram impávidos ao conflito armado, fomentado pela Rússia, nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia, de que resultou a criação das autoproclamadas “repúblicas populares” pró-russas. Nada disto impediu as trocas comerciais, nomeadamente a importação de gás russo. Nenhum dos políticos da altura foi capaz de antever a crescente influência do governo de Putin e seus capangas ultranacionalistas, e oligarcas que, ao mesmo tempo que subsidiavam Putin, se passeavam pelas instâncias de luxo e comerciavam nos grandes mercados ocidentais.
As negociações realizadas em Istambul, no final de março de 2022, durante a agressão russa, e que foram um esforço sério para alcançar um cessar-fogo e encontrar uma solução diplomática para o conflito, foram desincentivadas por Boris Johnson que desencorajou o presidente Zelensky de aceitar um acordo com a Rússia, sugerindo que o Ocidente poderia fornecer maior apoio militar à Ucrânia e que a Rússia não deveria ser confiável para um acordo de paz duradouro. Agora, em mais uma cimeira da NATO, o seu líder solicita o levantamento das restrições defensivas ao material de guerra cedido, lançando mais gasolina para a fogueira, numa atitude belicista que poderá conduzir a uma escalada do conflito com consequências ainda mais trágicas.
Quantos mais milhares de soldados ucranianos e russos precisam de morrer, ou de ficar incapacitados para sempre? Quanta mais destruição material, quanto mais sacrifício será necessário exigir às famílias ucranianas e russas? Quantos mais refugiados e deslocados, com vidas completamente destroçadas, e quanta mais miséria será necessária para que esta carnificina termine? Ou há sinistramente interessados num conflito final?
E qual a alternativa? A rendição? Certamente que não. Poderá contrapor-se que tudo isto é um jogo de reajustamento aos grandes interesses geoestratégicos, de quem procura uma nova ordem mundial, e que, para isso, é necessário regressar à Guerra Fria, ao equilíbrio imposto pelo terror. Poderá contrapor-se que o agressor não olha a meios e que, uma vez derrotada a Ucrânia, avançará pela Europa dentro até esbarrar com as fronteiras da NATO (que se deslocaram para leste, não esqueçamos) tornando inevitável um terceiro (e derradeiro) confronto mundial.
Não há aqui da minha parte, qualquer ódio ao Ocidente, muito menos qualquer pró-putinismo. Há sim uma revolta contra os maus tratos a que a democracia tem estado sujeita por parte das lideranças políticas modernas, criadas em “berço de ouro”, conduzidas por grupos de interesse cada vez mais influentes. Há uma efetiva traição à democracia. A democracia ocidental está numa crise profunda de valores, com políticos que mentem descaradamente, obcecados com o poder e com as sondagens. Uma democracia que está a ser minada pelo crescimento brutal dos movimentos extremistas (de radicais de direita e esquerda). Uma Europa que é refúgio de milhões de refugiados, mas que é incapaz de os integrar dignamente. Uma Europa que constrói muros e deporta. Um Europa que se prepara para se militarizar, entrando despudoradamente na corrida aos armamentos.
Teria Churchill (tão invocado, embora num contexto completamente distinto) conduzido as coisas desta forma? Estamos nós, cidadãos pacíficos, a ser perigosamente conduzidos por políticos medíocres e submissos a interesses que não controlamos.
A alternativa é lutar, por todos os meios, pela paz (justa e negociada).
Esperemos que o bom senso prevaleça na anunciada cimeira, em meados deste mês, na Suíça, e que haja políticos à altura que consigam formar uma grande aliança pacifista que ainda vá a tempo de mudar o curso desta loucura que nos poderá conduzir ao fim da espécie. E que a opinião pública ocidental esteja atenta para impor, por meios pacíficos, a sua vontade claramente maioritária a favor da paz.