O futuro de Donald Trump está, a partir desta quarta-feira, nas mãos dos 12 nova-iorquinos que compõem o júri do julgamento em Manhattan do processo que envolve um pagamento à atriz de filmes pornográficos Stormy Daniels. Ao longo de seis semanas, o mundo acompanhou vorazmente cada ida de Trump ao tribunal, incluindo os detalhes mais lascivos sobre a vida sexual do ex-presidente, os duelos intensos entre os advogados da defesa e da acusação e a pressão em torno do ex-advogado de Trump, Michael Cohen.
O primeiro julgamento de sempre envolvendo um antigo Presidente dos Estados Unidos também teve os seus momentos mais insólitos e, por vezes, desnecessários (como as “breaking news” sobre se Trump tinha adormecido ou não), decorrentes de um frenesim mediático como a justiça norte-americana há muito não via. E o ex-Presidente ajudou ao “espetáculo”, sendo repetidamente advertido por comentários proferidos dentro e fora da sala de audiências sobre o juiz e o caso.
O júri pode demorar dias, semanas ou mais um mês a tomar uma decisão. Ao todo, Trump está acusado de 34 crimes de falsificação de documentos e fraude fiscal.
Numa altura em que um processo entra na fase final e outros três processos continuam a ser uma sombra na campanha eleitoral do antigo Presidente, vale a pena recordar quais os próximos passos e o que pode acontecer a Trump e à sua candidatura à Casa Branca, caso seja considerado culpado.
O que está em causa neste julgamento?
Trump é suspeito de falsificar documentos de contabilidade da sua empresa, de modo a ocultar o pagamento de 130 mil dólares (cerca de 120 mil euros) a Stormy Daniels, para que esta não revelasse o adultério do magnata. O caso acabou por ser tornado público em 2018 e Michael Cohen, o ex-advogado e testa-de-ferro de Trump responsável pelo pagamento, admitiu ter agido a mando do ex-Presidente dos Estados Unidos.
Segundo acusa o Ministério Público de Nova Iorque, Cohen encontrou-se com Daniels em 2016 durante a campanha para as eleições presidenciais e “comprou” o seu silêncio. Trump terá depois reembolsado Cohen e terá falsificado documentos para esconder a transação.
O ex-Presidente negou todas as acusações, negou qualquer relação com Daniels e tem defendido que o processo contra si é uma “perseguição” motivada por questões políticas.
Na terça-feira, Joshua Steinglass, da acusação, contou nas suas alegações finais que o então candidato republicano pagou e contou com David Pecker, ex-editor do jornal “The National Enquirer” para fazer desaparecer a história sobre o caso com Daniels. Steinglass argumentou tratar-se de uma “subversão da democracia”, de modo a influenciar as eleições de 2016.
O julgamento foi sendo pautado pelo repetido desrespeito de Trump pelas ordens de censura e multas do juiz, e pelas duas principais testemunhas, que foram precisamente Stormy Daniels e Michael Cohen. Os detalhes sexuais revelados por Daniels (cujo nome verdadeiro é Stephanie A. Clifford) acabaram por ser menos preponderantes do que se esperava; já a presença de Cohen gerou muito maior alvoroço, mais reações deTrump e várias acusações de mentiras.
Donald Trump durante o julgamento num tribunal de Nova Iorque, EUA
Michael M. Santiago/Reuters
A decisão parece pendente, em parte, do que o júri achar das declarações de Cohen. Se vir o antigo representante de Trump como um homem que já esteve preso e que está a contar a verdade sobre o antigo patrão, é possível que exista uma condenação. Contudo, caso a defesa consiga convencer que Cohen mentiu para prejudicar Trump, como vingança pelo seu despedimento em 2018, uma condenação torna-se mais improvável.
Quais as probabilidades de uma condenação?
É extremamente improvável que Donald Trump seja colocado numa cela antes das eleições presidenciais de novembro, às quais concorre como candidato pelo Partido Republicano, embora muitos democratas nos EUA mantenham alguma esperança.
Segundo o Washington Post, os crimes de que Trump é acusado neste julgamento são puníveis com uma pena de entre 16 meses e quatro anos de prisão. Especialistas jurídicos consultados pelo jornal referiram que, por serem crimes não-violentos, é ainda menos provável que seja aplicada prisão preventiva ou o pagamento de uma caução. Além disso, Trump tem 77 anos e não tem antecedentes criminais.
O júri de 12 pessoas tem de ser unânime na sua decisão de ilibar ou condenar o ex-Presidente. Caso não seja possível chegar a um consenso, o juiz pode fazer cair o caso e dar oportunidade ao Ministério Público de Nova Iorque de apresentar um novo processo.
No entanto, na eventualidade de Trump ser considerado culpado, caberá ao juiz Juan Merchan decidir a sentença. Merchan – a quem Trump chamou de “corrupto” na terça-feira – pode decidir pela prisão do candidato republicano num estabelecimento prisional em Nova Iorque, por prisão domiciliária ou por liberdade condicional.
A lei define que a defesa dispõe de 30 dias para apresentar a intenção de apelar da decisão, e seis meses para recorrer. Se o tribunal suspender a sentença enquanto espera pelo recurso, o processo pode estender-se para lá da data das eleições, marcadas para 5 de novembro.
Se for condenado, Trump pode ser candidato na mesma?
É, possivelmente, a pergunta mais fácil de todo este imbróglio legal e a que tem a resposta mais simples e curta: sim.
A Constituição dos Estados Unidos não proíbe pessoas condenadas por crimes ou pessoas encarceradas de serem candidatas às eleições presidenciais. Os únicos requisitos definidos pela Constituição são que o candidato tenha 35 ou mais anos; que tenha nascido nos EUA; e que resida nos EUA há pelo menos 14 anos.
A 14.ª Emenda da Constituição também especifica que pessoas condenadas por insurreição não podem concorrer à Casa Branca (a emenda foi criada após a Guerra Civil do séc. XIX, pensada nos que lutaram pelo lado derrotado). Os supremos tribunais do Colorado e do Maine decidiram que Trump devia ser afastado do boletim de voto naqueles estados, por ter alegadamente incitado os seus apoiantes a invadir o Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. Mas o Supremo Tribunal federal (ultraconservador e repleto de juízes favoráveis a Trump) reverteu a decisão de forma unânime, concordando que apenas o Congresso federal tem o poder de aplicar essa emenda constitucional. Alterar esse regime obrigaria a uma maioria de dois terços e, com um Congresso nas mãos dos republicanos e com um clima político tão politizado, qualquer consenso é praticamente impossível.
Dos 88 crimes de que foi acusado, nenhum deles implica insurreição e, por isso, nenhuma condenação impediria Trump de ser candidato.
Na pior das hipóteses, a única coisa que poderia acontecer a Trump no imediato, caso fosse condenado, seria perder o direito ao seu próprio voto no estado da Flórida.
JIM LO SCALZO
É possível ser candidato a Presidente dos EUA estando preso?
Como vimos, há várias formas possíveis de encarceramento ou restrição de liberdade para Donald Trump, e todas elas obrigam a um enorme esforço logístico.
Em caso de prisão domiciliária, Trump poderá tentar fazer comícios a partir do seu resort de Mar-a-Lago, na Flórida, organizar conferências de imprensa, gravar vídeos promocionais e entrevistas, de modo a tentar contornar a impossibilidade de sair de casa. A situação peculiar forçaria Trump a adotar uma estratégia de campanha semelhante à que foi praticada por Joe Biden – em 2020, o então candidato democrata fez uma boa parte dos seus compromissos mediáticos a partir da garagem, por causa da pandemia.
No caso o juiz de Nova Iorque optar pela liberdade condicional, o republicano poderia manter os seus eventos e a presença nos debates combinados com a campanha de Biden, mas teria de levar à aprovação das autoridades todas as viagens para comícios fora do estado de Nova Iorque. E, como a liberdade condicional acarreta a perda do direito à privacidade, Trump podia ser alvo de buscas aleatórias ou de despiste de drogas a qualquer momento.
Em ambos os casos, seria preciso considerar a complexa logística em torno dos Serviços Secretos que, além de protegerem o atual Presidente, protegem também os antigos Presidentes dos EUA. E se as constantes idas e vindas de Trump, entre comícios e audiências, já esticaram os limites dos Serviços Secretos, proteger Trump na prisão constituiria um desafio sem precedentes.
De qualquer forma, mesmo com uma condenação em cima da mesa, parece também inquestionável que Trump seja o candidato dos conservadores nas próximas eleições.
Existe precedente?
Surpreendentemente, sim! Em 1920, Eugene V. Debs, líder do Partido Socialista da América e um dos mais importantes socialistas da história dos EUA, foi nomeado candidato pelo seu partido às eleições presidenciais desse ano.
Dois anos antes, em 1918, numa altura em que os partidos comunistas nos EUA começavam a ser violentamente reprimidos, Debs foi condenado a 10 anos de prisão por promover resistência ao alistamento militar para a Primeira Grande Guerra, por se opor à participação dos EUA no conflito.
A partir da prisão, Debs recebeu 900 mil votos, cerca de 3% da votação desse ano, e só foi libertado no Natal de 1921 por ordem do presidente Warren G. Harding. A sua campanha foi assegurada pelo candidato socialista a vice-presidente, Seymour Stedman.
Eugene V. Debs foi candidato em 1920 a partir da prisão de Atlanta
Hulton Archive/Getty Images
O atual candidato republicano e repetente nestas eleições é, contudo, muito mais conhecido do que Debs era há mais de 100 anos, e os votos em Trump não serão inconsequentes como os votos no histórico socialista foram. Segundo agregador de sondagens do site FiveThirtyEight, Donald Trump mantém uma média de 41,2% em todos os inquéritos, 1,3% acima de Joe Biden.
E se Trump vencer a partir da prisão?
Ninguém sabe, porque nunca aconteceu. A partir daqui, estamos na base da adivinhação.
Segundo especialistas consultados pelo New York Times, é verdade que a Constituição não desqualifica um presidente-eleito por estar preso ou por ter sido condenado. “Acho que os fundadores nunca sequer consideraram que alguém estivesse nesta situação”, avaliou ao jornal a professora Jessica Levinson, da universidade Loyola Law School.
A 25.ª Emenda da Constituição aborda a transição de poder entre o Presidente e o vice-presidente em caso de morte, demissão, exoneração do Presidente ou se este “for incapaz de cumprir o poder e dever da posição”. Mas a emenda obriga a que o Congresso ou a maioria do Governo tomem a iniciativa de classificar Trump como “incapaz” de governar – uma hipótese longínqua, tendo em conta a lealdade dos republicanos ao seu líder.
O mais provável é que Trump procurasse ser libertado, argumentado que o encarceramento o impediria de cumprir as suas obrigações constitucionais. É também possível que o hipotético “Presidente-recluso” se perdoasse a si próprio quando tomasse posse, mas tal intervenção obrigaria à intervenção do Supremo Tribunal dos EUA.
Se Trump vencer as eleições enquanto os processos estão por concluir, a situação é também completamente nova. O Departamento de Justiça está proibido de investigar um Presidente em funções, pelo que o mais provável seria que um procurador-geral nomeado por Trump simplesmente arquivasse os processos.
BRENDAN SMIALOWSKI
Quais são os outros casos em que Trump está envolvido?
Além do processo em Nova Iorque, Trump está ainda acusado em três processos diferentes – um sobre a invasão ao Capitólio, outro sobre alegada fraude eleitoral na Geórgia, e o último sobre o uso ilegal de documentos classificados encontrados no seu resort.
O caso mais complexo envolve a acusação federal sobre a eleição presidencial de 2020, que Trump perdeu para Joe Biden. As autoridades investigaram o papel do então Presidente dos EUA nas tentativas goradas de reverter o resultado das eleições em estados críticos, através da substituição de delegados ou da eliminação de votos, e na promoção de teorias falsas de fraude eleitoral. Em janeiro de 2021, estes esforços culminaram com o ataque ao edifício do Congresso por apoiantes do Presidente derrotado, que interromperam a certificação oficial da vitória de Biden.
Trump foi acusado em agosto de 2023 pelo Departamento de Justiça de quatro crimes: um por alegada conspiração para violar direitos constitucionais; um por alegada conspiração para derrubar o Governo; e dois crimes relacionados com a alegada obstrução de procedimento oficial.
A justiça continua à espera que o Supremo Tribunal norte-americano decida sobre se o ex-Presidente pode ser acusado desses crimes.
No caso de interferência eleitoral na Geórgia, Trump e outros 18 associados foram acusados pelo condado de Fulton por alegada tentativa de reverter os resultados eleitorais no estado, e quatro já admitiram serem culpados. Foi no âmbito deste processo que a agora histórica fotografia de Donald Trump na cadeia foi captada.
Seis das 41 acusações foram arquivadas pelo juiz em março e ainda não foi definida uma data para o início do julgamento.
Quanto ao processo sobre os documentos classificados de Mar-a-Lago, o antigo Presidente foi investigado e acusado pelo procurador especial Jack Smith de levar ilegalmente documentos da Casa Branca para a sua residência pessoal, depois de deixar a Presidência. Em agosto de 2022, o FBI realizou buscas no resort de luxo na Flórida e encontrou documentos classificados e secretos espalhados por quartos e várias salas.
Donald Trump foi acusado de um total de 40 crimes de posse ilegal de documentos e obstrução de justiça, ao abrigo da “Lei da Espionagem”. O julgamento estava marcado para o dia 20 de maio deste ano, mas foi suspenso indefinidamente pela juíza e, por isso, é improvável que arranque antes das eleições presidenciais em novembro.