Há duas histórias para contar. A primeira delas é sobre a forma como a Dinamarca quis controlar o crescimento populacional dos inuítes, a população nativa da Gronelândia. E a segunda é sobre a forma como uma fotojornalista francesa tomou conhecimento deste programa de esterilização forçada e decidiu documentar o que se passou. Ambas estão interligadas, embora várias décadas as distanciem.
Comecemos, então, pela primeira. O Governo dinamarquês achou que a modernização da Gronelândia nos anos 50 estava a ter consequências nefastas para o Estado, porque o aumento da população inuíte — a palavra colonial “esquimó” foi substituída pela terminologia local — era considerado demasiado dispendioso para os cofres públicos. Essa modernização baseava-se nisto: um boom de construção naquela região autónoma da Dinamarca, no Árctico, atraiu muitos trabalhadores provenientes da parte continental do país e esse fluxo migratório teve uma consequência que já adivinharam: o número de gravidezes entre as jovens mulheres cresceu.
Mas essa não foi a única consequência que inquietou as autoridades do país. Como os trabalhadores da construção permaneciam na ilha por pouco tempo, o número de mães solteiras acompanhou o boom da construção na Gronelândia (Kalaallit Nunaat, a “nossa terra”, em gronelandês, ou Grønland, “terra verde”, em dinamarquês). Eram booms a mais.
O Estado não estava disposto a cuidar de tantas mães solteiras, que eram encaradas como um obstáculo ao desenvolvimento, porque o facto de cuidarem dos filhos as impedia de prosseguir os estudos, obter formação profissional e de participar activamente num novo mercado de trabalho, em nome de uma visão modernizadora da Gronelândia.
Havia que atalhar o problema. Como? Simples: o Governo dinamarquês pôs em campo um programa de esterilização forçada, sem o consentimento da maioria das crianças, jovens e mulheres inuítes abrangidas. O plano foi aplicado em segredo, escusado será dizê-lo, a 4500 mulheres, pelo menos, entre 1960 e 1975, no mínimo, uma vez que há quem sustente que este controlo de natalidade se prolongou até mais recentemente.
Durante este intervalo de década e meia, foram inseridos 4500 dispositivos intra-uterinos (DIU) a outras tantas mulheres, algumas das quais com apenas 12 anos — cerca de metade de todas as mulheres em idade fértil que habitavam a ilha nessa altura.
Naja Dyrendom Graugaard e Amalie Høgfeldt Ambrosius, autoras de um ensaio sobre o tema, uma das quais gronelandesa, referem que muitas das vítimas “eram adolescentes na puberdade, nem sequer sexualmente activas, e foram mandadas directamente da escola, pelo professor, para a sala do médico, para a colocação do DIU, sem o envolvimento ou o consentimento dos pais. Algumas das mulheres também relataram que não foram informadas da colocação de um DIU durante o exame ginecológico do seu médico e, por conseguinte, sofreram anos de infertilidade inexplicável e complicações físicas associadas”.
O segredo só foi desvendado, em 2022, através de uma série de cinco podcasts chamados Spiralkampagnen (que ainda hoje podem ser escutados no Spotify e em outras plataformas). Spiralkampagnen — que quer dizer qualquer coisa como campanha da espiral, mas que também é conhecida igualmente como campanha do DIU — foi investigada e denunciada por dois jornalistas e deu origem à criação de uma comissão criada para gerir o incómodo, identificar responsabilidades e ponderar reparações até ao final deste ano. Aqui chegados, está na hora de contar a segunda história.
Meia geração perdida
Juliette Pavy é uma fotojornalista francesa, freelancer, co-fundadora de um colectivo de repórteres de imagem chamado Hors Format. “O que nos une é o desejo comum de contar histórias em profundidade sobre temas relevantes em França e no mundo”, diz Juliette ao P3. “Divulgamos o nosso trabalho através de vários meios (publicações impressas, livros, exposições e até histórias no Instagram) para chegar a diversos públicos.
Juliette Pavy é multifacetada, quer na expressão fotográfica, quer nos seus interesses. Há, contudo, duas ou três linhas mestras. A começar pelo facto de se ter interessado pelo Árctico, há cerca de uma década, um local onde volta amiúde, visível nas fotografias impactantes das primeiras páginas do Libération aquando da COP 28 ou quando o degelo é um tema na ordem do dia.
“O facto de ser fotojornalista influencia a minha abordagem. Começo com factos reais, testemunhos, entrevistas e fotografias de arquivo, para desenvolver e construir a minha narrativa para a fotografia documental. Esforço-me por reunir o máximo de informação possível para contar a história da melhor forma possível através de imagens”, sintetiza com a clareza do seu discurso conciso.
Foi isto que Pavy fez quando tomou conhecimento da Spiralkampagnen, quando os podcasts com a mesma designação foram distribuídos nas plataformas de streaming, e se deparou com um resumo na imprensa local sobre a esterilização forçada de mulheres, durante a era da colonização dinamarquesa, e decidiu “aprofundar este tema”.
A fotógrafa seguiu o seu método habitual: reuniu factos, testemunhos e fotografias de arquivo para desenvolver e construir a sua narrativa de fotografia documental. “Para os gronelandeses, esta história é uma entre muitas outras relativas ao período da colonização dinamarquesa. O facto de o caso ter recebido a atenção dos meios de comunicação social e de estar a ser investigado deu às vítimas a possibilidade de falarem, depois de terem guardado segredo durante quase 50 anos. Agora, elas sabem que não estão sozinhas”.
E, Juliette, o que dizem as vítimas? “Para elas continua a ser um acontecimento traumático. Falar sobre isso ainda hoje é um desafio. Para além da dor física e, para algumas, das inúmeras complicações de saúde que se seguiram, muitas têm o trauma de nunca poderem ter filhos.”
O trabalho documental de Julliette Pavy — foi com Spiralkampagnen: Forced Contraception and Unintended Sterilisation of Greenlandic Women, que venceu o prémio de fotógrafa no Sony World Photography Awards, em Abril passado — inclui fotografias das vítimas desta campanha, das clínicas onde a esterilização foi efectuada, de imagens de raios X que expõem o dispositivo no interior dos corpos ou dos membros da comissão nomeada para analisar as suas implicações.
A fotógrafa afirma confiar no poder judicial para conduzir a investigação de forma eficaz e acrescenta: “Perguntei às mulheres que foram vítimas de esterilização e, em geral, o que elas mais procuram é um pedido de desculpas oficial e o reconhecimento do que aconteceu. Além disso, também procuram uma indemnização financeira, embora não seja necessariamente a sua prioridade”.
A divulgação desta campanha ocultada obrigou o país a confrontar-se com o seu passado. Vários autores consideram que este caso é um exemplo de como o Estado dinamarquês “utilizou os discursos medicalizantes para controlar as mulheres dinamarquesas e a sua reprodutividade” e que “revela os mecanismos profundamente coloniais e racializados da subordinação sistemática das mulheres, raparigas e corpos kalaallits”.
Concluindo com Dyrendom Graugaard e Amalie Høgfeldt Ambrosius, esta esterilização involuntária põe em causa a imagem que os “dinamarqueses têm do seu colonialismo” e relembra que, à semelhança da discussão em outros países europeus, os historiadores têm procurado explicar as atrocidades coloniais como sendo “típicas do seu tempo” enquadráveis na “lógica imperial do passado”.
No entanto, as mesmas referem que “a amnésia colonial que as abordagens excepcionalistas e explicativas da história colonial dinamarquesa tendem a produzir não podem aligeirar o que se passou. E o que se passou foi uma medida coerciva e estratégica para controlar a população”, dizem. E concluem: “A aplicação do DIU dinamarquês aos kalaallits também deve ser entendida como uma prática genocida, destinada a evitar nascimentos, que resultou na perda de meia geração”.