São por demais conhecidas as graves dificuldades com que se debatem as Forças Armadas (FFAA) e os militares: carreiras obstruídas, retribuições anacrónicas e um sistema deficiente de assistência na saúde. Mas a maior de todas é a da falta de efectivos. Os militares podem não ser promovidos, serem mal remunerados, terem de suportar as despesas de saúde indispensáveis para permanecerem ao serviço, mas, mesmo nestas condições adversas e com os parcos recursos que lhes são atribuídos, vão sempre esforçar-se, até ao limite, para cumprir a missão. E cumprem. Contudo, sem militares, não há missão que possa ser cumprida.
Para tentar ultrapassar esta carência, em Abril de 2019 foi publicado o Plano de Acção para a Profissionalização do Serviço Militar (PAPSM), reiterado em abril de 2023 pela ministra da Defesa Nacional.
Nesse documento são definidos três Eixos Estratégicos: “Recrutar”, “Reter” e “Reinserir”, verbos claramente mal conjugados, já que os resultados têm sido sempre negativos, traduzindo-se numa quebra contínua do quantitativo militar ao dispor das FFAA e da Nação.
O quadro conjuntural é tão grave, que diferentes entidades e instituições já se pronunciaram alertando, desde há muitos anos, para o estado de falência das FFAA que pode conduzir, a breve trecho, à sua extinção.
Insistimos no tema, por dever e sentido das responsabilidades, atento ao impacto negativo que obviamente tem para a Defesa e Soberania Nacionais.
Algumas considerações pontuais sobre o PAPSM:
Eixo A – Recrutar
As novas Tabelas de Inaptidão e Incapacidade das Forças Armadas regrediram de modo indesejável. Vejamos:
- A redução das exigências físicas e psicológicas, nomeadamente no que respeita à altura mínima dos mancebos a incorporar, à admissão de transsexuais ou não binários e outras, para além de criarem obstáculos adicionais até agora desconhecidos paras as FFAA, apenas reflecte a crescente dificuldade de recrutamento e ilude o principal contratempo sem a resolução do qual, estas medidas também serão inúteis e ineficazes para produzir os efeitos pretendidos. Continuamos a tentar desviar as atenções da condição essencial, o problema das remunerações.
- No que concerne à altura mínima é relevante destacar um estudo efectuado pelo Imperial College de Londres. Nele, foram analisadas as alturas médias dos nacionais de todos os países do mundo, no período compreendido entre 1914 e 2014. Relativamente a Portugal, o dado mais pertinente revelou que, no período em causa, os homens “cresceram”, em média, 13,9 cm e as mulheres 12,5 cm.
Com estes elementos, parece indubitável que não seria necessário reduzir a altura mínima para ingresso nas FFAA. As razões para a falta de anuência ao Serviço Militar são outras e todos os portugueses o sabem. No fundamental, o incumprimento da Lei da Condição Militar (Lei nº 11/89, de 01de junho). - Os jovens, quando procuram uma profissão, pensam prioritariamente na remuneração que vão auferir e nas condições de vida que irão usufruir. Por muito que sejam atraídos pelo que imaginam ser a vida militar, os vencimentos que irão receber são um instrumento poderoso de recusa. E desistem quando se apercebem dos perigos, dureza do serviço, afastamento da família e dos amigos, e de outras contrariedades a que terão de resistir, que são próprias da Profissão Militar.
- Da consulta do Sistema Retributivo da Administração Pública (SRAP), de 2008, conclui-se que um 2º grumete/soldado tinha, então, um vencimento superior a muitas categorias de algumas carreiras da Administração Pública. Ao longo dos anos, esse número foi-se contraindo e o SRAP, de 2024, determina que o 2º grumete/soldado aufira o vencimento mais baixo da AP, mesmo inferior ao de todos os estagiários que existem em diversas carreiras profissionais. Perante este panorama qualquer “Voluntário” pensará duas vezes antes de se comprometer e, no final, não só não dará um passo em frente, como perderá qualquer interesse na adesão ao Serviço Militar.
Eixo B – Reter
A revisão do Regulamento de Incentivos à Prestação do Serviço Militar (RIPSM) foi feita com o propósito de reforçar a retenção dos militares nas fileiras. Porém, o trabalho elaborado não obteve qualquer tipo de êxito, já que as saídas continuam a ocorrer e, agora, em ritmo, nunca imaginado, de progressão geométrica. Ou a revisão foi mal-executada ou, o mais provável, os incentivos não são atractivos, nem fazem a diferença. É claramente aqui que está o cerne da questão. Já se escreveu e debateu demasiado sobre esta matéria e todas as conclusões apontam para a remuneração atribuída aos militares, com especial ênfase na respeitante à categoria de Praças, como a razão principal que leva os jovens a furtarem-se ao Serviço Militar ou ao seu abandono para aqueles que tiveram a ousadia de ingressar nas fileiras.
Eixo C – Reinserir
- O militar em Regime de Contrato (RC) ou de Contrato Especial (CE) precisa de confiar que, no termo da prestação de serviço, terá assegurada uma integração na sociedade sem constrangimentos, embargos ou embaraços. Dizendo de outra forma, o RC tem que funcionar como uma ponte que não dificulte ou mesmo garanta um emprego estável e seguro aos que a atravessarem. Paralelamente, o Estado e o tecido empresarial sabem que irão receber um trabalhador bem qualificado, técnica, física e psicologicamente, minorando, assim, custos de formação e valorizando a experiência adquirida pelo militar.
- E isto é possível se o Estado se empenhar na defesa daqueles que promovem a sua segurança, providenciando a publicação de legislação que torne extensiva ao Sector Privado a aplicação do Artigo 24.º, Acesso a emprego público, do Decreto-Lei n.º 76/2018 de 11 de Outubro, Regulamento de Incentivos à Prestação de Serviço Militar nos Diferentes Regimes de Contrato e no Regime de Voluntariado (RIPSM), bem como a eliminação do sistema de quotas constante dos artigos 25º e 26º, passando os militares a ter preferência total. A fundamentação desse novo normativo pode assentar no princípio indiscutível de que a Defesa é uma actividade transversal a toda a sociedade portuguesa e que todos têm a responsabilidade de contribuir para o seu sucesso, da forma que lhes for possível.
O RIPSM preocupa-se muito com aspectos acessórios, relegando para terceiro plano o que é absolutamente decisivo. As consequências são bem visíveis: os efectivos das FFAA diminuem dia após dia.
Também não podemos esquecer que o Quadro de Praças do Exército e o Regime de Contrato Especial vão ser constituídos por militares extremamente especializados e de idade avançada. Estas duas medidas têm o seu interesse, mas não vão resolver o problema dos efectivos. As FFAA, sobretudo o Exército, necessitam de uma massa combatente com vinte e poucos anos porque, apesar da enorme evolução tecnológica que preside aos conflitos modernos, são estes jovens que poderão ocupar e garantir a posse do terreno do combate, porque é esse o momento, quando a bota pisa o chão e é içada a bandeira, que materializa a vitória numa batalha.
As complicações que perturbam o regular funcionamento da Instituição Militar, as suas causas e variadas soluções estão definidas. Importa agora atacá-las com perseverança, denodo e sabedoria, sabendo-se que elas dependem essencialmente do interesse e, ponto importante, da vontade da Política. E não é o retorno do Serviço Militar Obrigatório que vai tornar as FFAA mais eficientes, mais operacionais, mais bem equipadas e com os seus recursos humanos mais bem preparados, sem prejuízo deste tema merecer uma reflexão com o objectivo de definir, para os jovens, outras formas de serviço em prol da comunidade e da Pátria.
Uma nota final
Portugal vive momentos conturbados nas vertentes política, social e económica. São demasiadas as profissões da Administração Pública que, com razão, clamam por melhores carreiras e melhores remunerações. Os militares continuam disciplinados, obedientes, confiantes, como o vêm fazendo desde há 40 anos. Bastou uma, ou outra voz dissonante falar na hipótese, meramente académica, mas prevista constitucionalmente, de os militares poderem vir para a rua e logo se levantou um coro de políticos a criticá-los, fortemente indignados com a essa possibilidade, esquecendo que durante esse período se deleitaram a desconsiderar quando não a humilhar as FFAA e as mulheres e os homens que as compõem.
Então, é legítimo perguntar: o que é que os militares podem fazer para conseguir que os seus direitos sejam respeitados e garantir o desejável equilíbrio entre deveres e direitos que nunca devia ter sido perdido? Os últimos 40 anos foram elucidativos quanto ao modo incapaz e incompetente como o poder político, e em particular a tutela, tratou os militares e as FFAA, e permitiu e promoveu medidas que fizeram com que muitas profissões da Administração Pública ultrapassassem a militar e que as restantes se aproximassem significativamente dela. E fizeram-no de forma premeditada, intencional e nociva para as FFAA.
A lista das profissões que reclamam por melhores condições remuneratórias é muito extensa. Os militares têm a percepção que, de acordo com o Programa do Governo, ocuparão o último lugar nos interesses do Executivo apenas porque, ao contrário das restantes, não se têm manifestado, não têm contestado publicamente e não têm feito ameaças de qualquer espécie.
Este programa, no que à Defesa diz respeito, enumera um conjunto de acções a realizar, caracterizadas por generalidades, sem expressão e sem força. Não há um compromisso, uma data, uma referência, uma frase apelativa e convincente. É um programa frágil e muito débil, que revela bem a ausência de interesse e de preocupação do Governo em relação à Defesa, às FFAA e aos militares. Ao contrário dos profissionais que vão beneficiar das prioridades estabelecidas para a melhoria das carreiras da Administração Pública, que já eram as esperadas, os militares continuam, pelos vistos, a não constar da lista de inquietações do Estado, vincando a nula importância que a Defesa, as FFAA e os militares têm para este Governo, tal como tiveram para os anteriores.
As mulheres e os homens que integram as FFAA estão cientes do seu mérito e da justeza das suas aspirações e continuam a manter uma postura equilibrada, respeitadora, esperançada e optimista. Vivemos em cima de um barril de pólvora de direitos constantemente negados e iludidos. É este o caminho? Até quando?
A este propósito, convém ter em atenção o que se está a passar com os oficiais e sargentos mais jovens que vêm referindo que se sentem desmotivados e, nomeadamente, que estão “desapaixonados” por aquilo em que se está a transformar a sua carreira, a carreira castrense. A profissão militar é das poucas que exige que seja desempenhada com entusiasmo, amor e paixão, para se poder resistir a tanto risco, tanta dor e penosidade, tanta pressão física, psíquica e moral, tanta sobrecarga de trabalho e tanto desconforto e insatisfação.
Com este enquadramento, esses militares podem caminhar em direcção a três destinos diferentes:
- Desistem e abandonam as FFAA, o que é mau;
- Adoptam uma postura passiva, pouco interventiva, desinteressada e abúlica, o que é pior;
- Perfilham uma atitude activa, contestatária e reivindicativa, o que pode ser muito grave e susceptível de virem a transpor os limites do admissível.
As Chefias Militares têm, nesta fase, um papel ainda mais relevante, mas carecem da atenção do Governo e da Política, para os apoiarem na superação dos assuntos da sua responsabilidade.
As mais variadas instituições e instâncias têm alertado reiteradamente para a situação cada vez mais difícil e quase insustentável que vivem as FFAA e os militares. Ninguém pode afirmar que não viu, que não sabia, que não foi informado ou que desconhecia. Não são discursos inflamados e promessas vãs que que alteram este quadro.
Os deputados eleitos recentemente e os governantes que assumiram as suas funções têm o dever básico, e intrínseco aos seus cargos, de dedicar a devida atenção às FFAA e aos militares, que estão cansados de tantas injustiças e de tanta discriminação negativa.
O caos ou a ordem são as opções para o futuro das FFAA e de Portugal e a decisão sobre qual o rumo a seguir está, sobretudo, nas vossas mãos.
Tenente-general reformado
Membro do GREI