Um gestor da MCE, a empresa de jogo comprada no Rio de Janeiro pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), revelou numa reunião em novembro de 2023 a existência de uma dívida de 200 mil reais — cerca de 40 mil euros — ao Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa do Brasil. Estima-se que o PCC, cuja principal fonte de rendimento tem sido o tráfico de droga, tenha dezenas de milhares de membros dentro e fora do Brasil, incluindo em Portugal.
A informação consta de um documento entregue à Santa Casa no final do ano passado e a que o Expresso teve acesso, numa investigação conjunta com a revista brasileira Piauí. Questionada sobre o assunto, a atual administração da SCML não quis comentar.
Na reunião referida nesse documento, um novo representante no Rio de Janeiro da administração da Santa Casa, então liderada por Ana Jorge, foi confrontado com a necessidade de se resolver a dívida de 200 mil reais ao PCC e com o facto de o crédito estar relacionado com uma “operação” da MCE em São Paulo, onde o PCC está mais presente. Ana Jorge tinha substituído em maio de 2023 Edmundo Martinho, o provedor que decidiu levar a Santa Casa a investir no negócio do jogo no Brasil.
Edmundo Martinho, ex-provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
António Pedro Ferreira
O representante da Santa Casa pediu ao funcionário da MCE para colocar a informação por escrito num e-mail, de modo a poder ser partilhada com os seus superiores em Lisboa, mas o pedido não foi bem acolhido. “Não dá para registar isso, não é?”, justificou o gestor da empresa de jogo.
A existir uma dívida junto daquela organização criminosa, os contornos em redor do investimento português na MCE tornam-se ainda mais suspeitos do que já eram três meses antes, quando Ana Jorge denunciou um conjunto de irregularidades ao Ministério Público em Portugal.
De acordo com o que o jornal Público revelou na altura, num artigo publicado em setembro de 2023, a provedora encomendara à consultora BDO uma auditoria forense e financeira sobre as atividades da Santa Casa Global, a subsidiária criada para concentrar todos os investimentos internacionais da SCML.
Havia sinais de que algo de errado tinha acontecido no Brasil entre 2021 e 2023. Ainda com a auditoria numa fase inicial, Ana Jorge remeteu elementos não só para a Procuradoria-Geral da República mas também para o Tribunal de Contas e para a ministra do Trabalho e da Segurança Social, com a tutela da Santa Casa, Ana Mendes Godinho.
Ana Jorge, ex-provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
António Pedro Santos
A versão final da auditoria forense encomendada por Ana Jorge foi entregue à Santa Casa no início do mês passado, mas nada consta no relatório sobre o PCC. A informação sobre esta organização criminosa foi passada a Lisboa por uma via paralela.
Um negócio discreto
O grupo fundado por Marcos Willians Herbas Camacho, o “Marcola”, decidiu entrar no mercado do jogo há mais de uma década, mas esse envolvimento foi gerido de forma muito discreta ao longo de anos.
Uma investigação conduzida pela Polícia Federal (PF) identificou uma disputa em setembro de 2021 entre o PCC e o Comando Vermelho, uma organização rival, no estado do Ceará. Líderes do Comando Vermelho quiseram impor à força a proibição no seu território da venda de jogos de azar controlados pelo PCC e com isso expuseram os nomes de seis empresas que atuam nessa indústria, incluindo a Fourbet e a Loteria Fort.
Ao fim de dois anos de investigação, a PF acabou por estabelecer uma relação entre a Foubert, a Loteria Fort e a família de Marcola. Segundo a polícia, a Fourbert tem por detrás Leonardo Camacho, sobrinho de Marcola e filho de Alejandro Camacho, o “Marcolinha”.
Alejandro Herbas Camacho
D.R
O Marcolinha tornou-se responsável no PCC pelos negócios de jogo na década de 2010, de acordo com o que a investigação criminal apurou. Depois de ser preso em 2016, por tráfico de droga, o irmão de Marcola passou essa gestão para a sua mulher, Francisca, que dividia o seu tempo entre Fortaleza, capital do Ceará, e o interior do estado de São Paulo.
Francisca seria entretanto suplantada nos últimos anos pelo seu enteado Leonardo, filho de Marcolinha. Em 2022, Leonardo foi parado pela polícia de trânsito no estado de Mato Grosso do Sul na companhia de Henrique Gonçalves da Silva, um empresário que se declarou como dono da Fourbet. Segundo a PF, Gonçalves da Silva é apenas um testa-de-ferro da família Camacho.
O mesmo acontece com a Loteria Fort, empresa licenciada para vender a “Loteria dos Sonhos”, um jogo concessionado pela Loteria [e não lotaria, como se escreve em Portugal] Estadual do Ceará, e formalmente detida por Geomá Pereira de Almeida, mais conhecido como o Pereira. Na realidade, segundo a PF, este empresário trabalha também para o PCC. E para densificar ainda mais as relações entre todos estes personagens, Henrique Gonçalves da Silva é filho do braço-direito de Pereira, Cíntia Chaves Gonçalves.
As autoridades contabilizaram mais de 300 milhões de reais, o equivalente a 40 milhões de euros, em transações suspeitas ligadas às atividades da Loteria Fort ao longo de 11 anos, entre 2011 e 2022.
Várias modalidades de jogo têm sido usadas para o PCC lavar dinheiro produzido pelo tráfico de droga. Esse esquema chegou a abranger uma rede de 42 casinos clandestinos na Grande São Paulo e cinco casinos clandestinos em Fortaleza, além de pontos de venda do jogo do bicho, uma bolsa de apostas ilegais muito popular no Brasil.
Todos esses negócios eram geridos em São Paulo por Pereira e foram desmantelados em 2019 pelo Ministério Público e pela Polícia Civil. O empresário é atualmente arguido em três processos-crime no Tribunal de Justiça de São Paulo e outro no Ceará, respondendo por crimes de associação criminosa, corrupção ativa e branqueamento de capitais.
Uma entrada de leão
Mas por que haveria a Santa Casa de envolver-se com o PCC no Brasil, quando este grupo está concentrado em São Paulo e o negócio da MCE é desenvolvido no Rio de Janeiro, onde existem outros grupos criminosos a controlar o mercado do jogo?
Na realidade, a Santa Casa começou por entrar no Brasil por São Paulo. Constituída em fevereiro de 2021 como uma holding para todos os negócios planeados naquele país, a Santa Casa Global Brasil Participações Ltda, ou simplesmente SCG Brasil, abriu nessa altura um escritório num quinto andar da Avenida Paulista, em frente ao Museu de Arte Assis Chateaubriand.
A criação da SCG Brasil fora decidida um mês antes pela SCG Portugal, numa ata com as assinaturas dos seus três administradores: o então provedor Edmundo Martinho, Francisco Pessoa e Costa e Ricardo Gonçalves. Nesse momento, de acordo com a auditoria da BDO, foram dados “poderes para praticar os atos necessários para o efeito” a José Pedro Vaz Fernandes, um empresário e advogado português radicado no Brasil.
A holding SCG Brasil, a partir do qual foram adquiridas várias empresas em nome da Santa Casa, incluindo a MCE, começou com apenas mil reais de capital social mas quatro meses depois, em junho de 2021, esse valor foi reforçado com a entrada de 25 milhões de reais, o equivalente a cinco milhões de euros.
Além do investimento no Rio de Janeiro, com a aquisição da MCE em novembro de 2021, a Santa Casa também apostou forte em São Paulo.
Em dezembro de 2021, a SCG Portugal emprestou 3,7 milhões de euros à sua subsidiária brasileira, para, segundo a auditoria da BDO, “cobrir custos a serem incorridos pela SCG Brasil na atividade de venda de títulos de capitalização no estado de São Paulo”. Títulos de capitalização são uma espécie de bilhetes de lotaria a que estão associados prémios.
O empréstimo foi assinado por Ricardo Gonçalves, enquanto representante da SCG Portugal e da SCG Brasil, e aprovado pela administradora financeira da SCML, Maria João Mendes. Nessa altura, Ricardo Gonçalves acumulava já esses cargos com a função de presidente da MCE.
Um segundo empréstimo do mesmo género e para o mesmo efeito, no valor de três milhões de euros, foi contraído cinco meses depois, em maio de 2022, desta vez com mais uma assinatura — a de Francisco Pessoa e Costa.
Ricardo Gonçalves, presidente da MCE e administrador da Santa Casa Global Portugal e da Santa Casa Global Brasil, não quis responder às perguntas do Expresso e da Piauí. “Encontrando-se as matérias por si referidas a ser objecto da competente averiguação em sede do respectivo processo-crime, o qual, como decerto não ignorará, se encontra em segredo de justiça, lamento não me poder pronunciar publicamente, ao menos por agora, sobre as mesmas.”
Apostas anuladas
Confrontado também pelo Expresso, Vaz Fernandes garante desconhecer qualquer dívida ao PCC e explica que “a Santa Casa Global Brasil era acionista da Santa Casa Capitalização (SCC), que desenvolvia uma atividade de venda de títulos de capitalização (tipo sorteio de lotaria, semanalmente transmitido na televisão), na sua vertente de beneficência, atividade que era supervisionada pela SUSEP – Superintendência de Seguros Privados”.
Segundo este antigo administrador da SCG Brasil, que se demitiu em junho de 2023, depois da tomada de posse de Ana Jorge como provedora da SCML, essa atividade em São Paulo funcionava “no estreito cumprimento das regras definidas por aquela entidade reguladora” e foi “devidamente auditada”.
Além do investimento em títulos de capitalização, em novembro de 2021 o governo do Estado de São Paulo recebeu uma proposta de um consórcio que integrava a Santa Casa Global e os acionistas minoritários da MCE para a exploração de jogos de azar, num concurso aberto pelo governador que visava acabar com o monopólio do governo federal nesse negócio.
O estudo do consórcio integrado pela Santa Casa previa dar ao estado dois mil milhões de reais em receitas por ano, o equivalente a 400 milhões de euros, a partir da concessão de uma série de modalidades de jogo, incluindo raspadinhas e apostas desportivas online. A Santa Casa participou formalmente na fase de licitações, aberta em fevereiro de 2022, mas o concurso lançado pelo governo estadual acabou por ser anulado no final desse ano.
Houve ainda, em março de 2023, a constituição da EPV – Empresa de Promoção de Venda Ltda, com sede na avenida Marquês de São Vicente, em São Paulo, tendo como atividade a “intermediação e agendamento de negócios voltados para o ramo de entretenimento e jogos”. Esta firma tinha como administrador único José Pedro Vaz Fernandes.
Apesar de 100% detida pela Santa Casa, a empresa parece ter sido criada sem o conhecimento formal dos administradores da instituição em Lisboa. “Não resulta qualquer evidência de qualquer processo de aprovação interna da constituição da EPV”, lê-se na auditoria forense sobre os investimentos fora de Portugal. Mais: “Não resulta de qualquer documento analisado informação sobre os motivos que levaram à decisão de constituição da EPV”.
Ainda segundo o relatório da auditoria, “não foi igualmente disponibilizada qualquer documentação justificativa para que a EPV, ao contrário das demais sociedades da SCG Portugal, ser gerida por um só administrador, o que contraria os princípios impostos pela SCML”.
Vaz Fernandes justifica que essa foi apenas uma solução temporária. “Na altura da criação [da EPV] e não estando o registo de pessoas físicas devidamente atualizado e, por isso, permanecendo os dois outros administradores da SCG Brasil como estrangeiros, decidiu-se avançar apenas comigo como administrador, situação que seria posteriormente alterada, não fosse a situação de bloqueio e abandono a que a atividade no Brasil ficou sujeita por parte da SCML a partir de maio de 2023, dois meses depois, e que implicou na minha renúncia em final de junho”.
O antigo administrador da SCG Brasil lamenta que até hoje ninguém lhe tenha pedido esclarecimentos sobre o que aconteceu. “Nunca fui contatado pela BDO, SCG, SCG Brasil ou SCML para fornecer documentos ou esclarecimentos. Permaneci disponível para colaborar, mas não recebi respostas a partir de maio de 2023, inclusive do responsável pela internacionalização da SCML”
Dono do escritório Dinis Lucas & Pedro Fernandes, em São Paulo, e de outras três empresas brasileiras, este advogado português chegou a ser sócio de João Abrantes Serra, quer em Portugal, quer no Brasil.
Segundo um artigo do jornal Sol publicado em 2017, Vaz Fernandes e Abrantes Serra terão promovido vários encontros em 2007 e 2008 entre acionistas da Portugal Telecom (PT) e José Dirceu, antigo chefe da casa civil do presidente brasileiro Lula da Silva, para negociações sobre uma eventual compra da operadora de telecomunicações portuguesa pela Telemar, detida pelo grupo Andrade Gutierrez e que viria a fundir-se com a Brasil Telecom para formar a Oi.
O envolvimento nessas negociações levou a que o escritório Lima, Serra, Fernandes & Associados fosse alvo de buscas durante a investigação da Operação Marquês, que tinha como principal arguido o ex-primeiro-ministro José Sócrates, por suspeitas de corrupção relacionadas, entre outras coisas, com a Portugal Telecom.