O XXIV Governo Constitucional está a preparar um “Plano de Ação para os Media” a apresentar ao país até ao final do ano. Talvez este meu contributo possa ser integrado na reflexão que certamente o deverá preceder, a qual se deseja que possa ser ampla, participada e corajosa.
Proceder à revisão da Lei de Imprensa, Rádio e Televisão para, neste campo, atribuir à RTP um papel “especial” no combate à desinformação, como referiu o Ministro dos Assuntos Parlamentares, irá provavelmente manter esse debate num território agradável e tendencialmente consensual, mas, quanto a mim, estar-se-á a desviar as atenções da questão fundamental que deve haver ensejo para tratar: a da continuidade ou não da exclusividade do contrato de serviço público de audiovisual na empresa RTP, tendo em linha de conta as profundas mudanças que, entretanto, ocorreram na conceção e na forma da prestação desse serviço público.
Nada do que exponho a seguir colide com o acervo normativo da União Europeia em matéria de garantia de prestação de serviço público de audiovisual, uma vez que tal desiderato nunca é posto em causa pela minha abordagem. Nesta matéria, julgo, aliás, poder reivindicar alguma legitimidade política, na medida em que tentei contribuir, na medida das circunstâncias, para a credibilização e estabilização financeira da RTP durante o meu mandato como Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro e dos Assuntos Parlamentares, no XIX Governo Constitucional, sem a ter, por isso, tornado mais onerosa para o erário público, antes pelo contrário. No meu mandato, por exemplo, não autorizámos o aumento da CAV.
Mais de uma década depois, existem, sobretudo, dois caminhos para fazer este debate sobre o serviço público de audiovisual, tendo presente que o ponto fulcral do mesmo são os conteúdos oferecidos e não propriamente a entidade, ou entidades, que os produzem e divulgam.
Já é tempo de reconhecermos, sem falsos tabus ideológicos, que as operadoras privadas podem prestar um serviço público tão bom ou melhor que a RTP presta
Por um lado, há a possibilidade de manter este debate sobre o serviço público de audiovisual limitado àquela intenção de conferir à RTP um papel destacado no fortalecimento do jornalismo livre, rigoroso e verdadeiro e na importância que isso poderá ter no combate à desinformação.
Tal corresponderia, na verdade, à simples renovação do contrato de prestação serviço público de audiovisual com a RTP, agora reforçado com mais uma ou outra responsabilidade no quadro de literacia digital. Isso daria o pretexto suficiente para reforçar o endosso material que os contribuintes proporcionam à RTP, o que deixaria a empresa numa situação de maior conforto financeiro, pelo menos durante mais algum tempo. Porém, permanecendo no Estado, e nos contribuintes, o ónus único de suporte técnico-financeiro da empresa, como acontece com o modelo atual, mais cedo que tarde se teria de proceder a uma reestruturação equilibrada da empresa, com implicações substantivas quanto à sua dimensão, equipamentos e quadros.
Por outro lado, há uma oportunidade para reconhecer a mudança há muito em curso no sector da comunicação social, pública e privada, e encarar decididamente um processo de concessão do serviço público cometido à RTP, processo esse que mais eficazmente garantiria aquela reestruturação e redimensionamento, sem prejuízo da disponibilização dos produtos finais de serviço público de audiovisual nas suas mais distintas plataformas. Já é tempo de reconhecermos, sem falsos tabus ideológicos, que as operadoras privadas podem prestar um serviço público tão bom ou melhor que a RTP presta. É isso que as audiências mostram, uma procura cada vez maior pelos conteúdos produzidos pelos privados, que tornam a RTP tendencialmente irrelevante.
O caminho que prefiro assume que os conteúdos informativos e de entretenimento produzidos no quadro do serviço público de audiovisual podem ser garantidos por qualquer outro operador televisivo com idoneidade e capacidade
O primeiro caminho esconde as dificuldades de operação cada vez maiores enfrentadas pela generalidade dos órgãos de comunicação social e a sua crescente dependência de apoios diretos ou indiretos do Estado. Aliás, única forma de garantir a sua sobrevivência no curto prazo. Nestas condições, a RTP poderá continuar a viver no conforto da gestão pública, sem as exigências típicas de mercado, como a relação custo-benefício, dado o orçamento de Estado, via nomeadamente da CAV, estar sempre lá para cobrir qualquer situação mais constrangedora.
O segundo caminho, que prefiro, assume que os conteúdos informativos e de entretenimento produzidos no quadro do serviço público de audiovisual podem ser garantidos por qualquer outro operador televisivo com idoneidade e capacidade, desde que a sua qualidade seja contratualmente preservada, por exemplo, num quadro de abertura à sociedade, através da concessão da gestão do serviço público a privados, algo que está estudado pela RTP desde 2012 pelo que não seria difícil, digamos assim, “atualizar” quanto aos dados e referências para poder ter uma base de apoio à decisão.
Oxalá haja vontade política para realizar a ponderação que sugiro, envolvendo toda a sociedade, entidades públicas e privadas, já que, sem uma comunicação social livre, a democracia será sempre incompleta e crescentemente imperfeita.