Nenhum dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, está a caminho de ser alcançado até 2030, e apenas cerca de 16% das metas que compõem os objectivos estão no bom caminho. É o que revela a 9.ª edição do Relatório de Desenvolvimento Sustentável, divulgado esta segunda-feira pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN) das Nações Unidas.
A análise mostra que não apenas não estamos no caminho para atingir nenhum dos ODS a nível global, como ainda existem “grandes desafios” em seis dos 17 objectivos: fim da fome (ODS 2), saúde e bem-estar (3), comunidades e cidades sustentáveis (11), vida marinha (14), vida terrestre (15) e paz, justiça e instituições fortes (16).
As metas relacionadas com os sistemas alimentares e terrestres, distribuídas por diferentes ODS, estão “particularmente fora de rumo”, nota o relatório. Os restantes objectivos mantêm-se estagnados. Para o objectivo n.º 10, de redução das desigualdades, não há sequer dados para fazer uma avaliação rigorosa sobre a tendência. Em suma, não estamos nada bem.
Os países da Europa – que beneficiam do seu avanço histórico – continuam a liderar o índice, em particular os do Norte do continente. Finlândia, Suécia e Dinamarca são os que registam maior cumprimento das metas, seguidos da Alemanha e França. Portugal, que ainda só está em vias de atingir o objectivo de erradicação da pobreza extrema, passou de 18.º lugar no ano passado para 16.º este ano.
Tendo em conta que já se ultrapassou metade do tempo para fazer cumprir a Agenda 2030, as velocidades extremamente díspares são particularmente penosas de observar. Olhando para os dados mais preocupantes, o relatório mostra que o fosso entre o desempenho médio dos ODS a nível mundial e o desempenho dos países mais pobres e vulneráveis, incluindo os Pequenos Estados-Ilha em desenvolvimento (SIDS), aumentou desde 2015.
Nalgumas áreas do globo, os objectivos ainda estão longe, mas olhando para o ritmo de avanço é possível descortinar alguma esperança: a Ásia Oriental e do Sul foi a região que fez o maior progresso em direcção aos ODS, e o grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), assim como os chamados BRICS+ (Egipto, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) têm tido um forte progresso em comparação com a média global, até mesmo com alguns dos países desenvolvidos, que têm estagnado.
Cimeira do Futuro
Afinal, o que está a atrasar este processo? “É um pouco de tudo”, comenta Maria João Filgueiras Rauch, gestora da Rede Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN Portugal). Criada no ano passado para se juntar a mais de meia centena de redes nacionais da SDSN Global, a rede nacional acolhe segunda-feira, em Lisboa, a apresentação dos resultados do relatório global, na conferência internacional Paving the Way to the Pact of the Future, um encontro que antecede a grande Cimeira do Futuro, convocada por António Guterres para 22 e 23 Setembro em Nova Iorque, e que contará com a presença do economista Jeffrey Sachs, director da SDSN Global.
Neste momento, na contagem decrescente para a Cimeira do Futuro, debate-se uma nova arquitectura da governança mundial – uma “ONU 2.0”. Entre as propostas avançadas no relatório, subscritas por mais de uma centena de cientistas e personalidades de todo o mundo, estão uma reforma da Assembleia Geral das Nações Unidas, a reforma do Conselho de Segurança, a criação de outros conselhos e ainda recomendações para uma reforma da arquitectura financeira global.
Até lá, a cooperação e o multilateralismo – que, aliás, estão reflectidos no ODS 17, dedicado às parcerias – são “fundamentais” para chegar a soluções. “Se continuar a haver este desfasamento de desenvolvimento entre o Sul e o Norte global, nunca mais teremos um desenvolvimento harmonioso”, alerta Maria João Rauch, especialista em políticas de desenvolvimento sustentável do Centro de Engenharia e Desenvolvimento (Ceiia). “Enquanto houver pessoas que estejam a sobreviver, não podem preocupar-se com outras coisas.”
A gestora da SDSN dá um exemplo positivo de Portugal, com a intenção anunciada de converter parte das dívidas de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe em compromissos com “investimentos verdes” ao abrigo dos fundos ambientais das Nações Unidas.
Fica ainda uma ressalva: “O efeito da pandemia continua a subsistir.” O mundo seguia um “crescimento lento” nos primeiros anos dos ODS, e a seguir à pandemia entrou-se numa estagnação.
E Portugal?
Pela primeira vez, Portugal parece ter atingido o objectivo n.º 1, de erradicação da pobreza extrema. Portugal parece também bem encaminhado a nível das metas em matérias de igualdade de género (ODS5), energia acessível e limpa (ODS7) e cidades sustentáveis (ODS11).
“Falta-nos sempre alguma pontinha que faz com que o caminho para os objectivos não seja mais eficiente e eficaz”, observa Maria João Rauch. Por exemplo, o país tem avançado no aumento da quota de energias renováveis, mas mantêm-se dificuldades de ligação à rede que fazem com que isso não se traduza em benefícios maiores para a população.
A especialista dá ainda o exemplo do ODS 11, dedicado a cidades sustentáveis, onde Portugal tem tido algumas dificuldades em dar o salto. “A descarbonização continua a um passo muito lento porque o problema da habitação subsiste cada vez mais”, explica. “Há uma série de questões não resolvidas, e que se têm agravado.”
O diagnóstico também está feito sobre os pontos-chave a resolver: mais dados que permitam saber se realmente estamos num caminho seguro, e mais convergência entre os objectivos do desenvolvimento sustentável e as políticas nacionais e europeias.
Também em Portugal “não podemos alhear-nos dos efeitos da pandemia, porque esses efeitos ainda se fazem sentir”, nota Maria João Rauch. Mas isto não pode ser desculpa para o atraso na resolução de problemas estruturais, como a gestão dos resíduos, que continua a apresentar tendências negativas e faz com que o ODS relacionado com o consumo e produção sustentáveis continue longe do alcance.
“Quando estamos a falar desta performance, temos de ter noção de que estamos a falar dos indicadores existentes”, reforça ainda Maria João Rauch. Quase uma década depois da aprovação da Agenda 2030, que instituiu os 17 ODS a serem cumpridos nos 15 anos seguintes, o mundo ainda não sabe sequer como está em todas as metas definidas – e Portugal não é excepção.
O relatório mostra, por exemplo, que não existem dados para fazer uma análise rigorosa do ODS 10. Estas lacunas transversais na recolha de dados, aliás, já tinham sido notadas pelo Tribunal de Contas, numa auditoria aos resultados de 2022.
Actualmente, as entidades públicas têm estado a trabalhar na revisão dos indicadores para que sejam adaptados à realidade portuguesa, um esforço que tem sido coordenado pelo Centro de Competências da Administração Pública, o PlanAPP, dedicado ao planeamento, políticas e prospectiva. Neste momento o INE ainda está “a fazer um esforço para adaptar os indicadores à nossa realidade”. Mas continua a haver “falta de capacitação e de consciencialização para o problema”.
Como medir o desenvolvimento?
O principal problema, afirma Maria João Rauch, tem que ver com a falta de convergência de políticas, seja em Portugal, a nível da UE ou a nível global. Na União Europeia, onde se continua a apostar “num quadro de desenvolvimento tradicional”, explica a especialista, “só agora se está a fazer com que o quadro de referência de desenvolvimento esteja alinhado com os ODS”.
Ou seja, é habitual ver referências sobre o quadro da agenda 2030 em relatórios, relacionando alguns dados com os ODS, mas são observações muitas vezes pontuais, sem estarem ligadas a políticas de longo prazo ou relacionadas com metas atingidas tendo em conta os objectivos.
Ao observar os objectivos e as metas, os que mais avançaram parecem estar relacionados com mercados e dinheiro – energia limpa (ODS 7) e indústria, inovação e infra-estrutura (ODS 9) –, enquanto os aspectos sociais, ambientais e da paz parecem estar em retrocesso. Será, então, o financiamento o ingrediente-chave que está em falta?
Sim, mas não será suficiente. Um dos grandes obstáculos para que os ODS sejam considerados prioritários é que “organizámos a economia mundial em grande parte como um sistema de mercado de propriedade privada”, explicou Jeffrey Sachs, director da SDSN Global, em entrevista ao P2 publicada este domingo. Apesar de o Estado ter um papel importante em países como os da União Europeia, “as forças políticas dominantes continuam a ser impulsionadas pelos mercados”.
É por isso que na conferência internacional que tem lugar em Lisboa no início desta semana um dos painéis de discussão é sobre pós-crescimento, juntando também representantes da Comissão Europeia e da OCDE para reflectir sobre outras métricas de medida do desenvolvimento além do PIB.
Sustentabilidade ou PIB?
“Há uma desadequação destes modelos e das métricas que medem o desenvolvimento e a realidade”, descreve Maria João Rauch. “No fundo, nós temos um modelo de desenvolvimento que é baseado na produção da riqueza e que é um modelo pós-guerra”, explica a especialista em políticas públicas para o desenvolvimento.
Numa altura em que era preciso reconstruir e produzir riqueza, os países conseguiram medir os seus níveis de crescimento. “Hoje em dia, esse modelo já não se aplica”, alerta, em particular na medida em que se perdeu a questão do bem-estar e o carácter de redistribuição. “Ficou só a produtividade e a produção.”
A conclusão é que não basta aumentar o financiamento para investir nos ODS – é preciso introduzir métricas suplementares ao PIB que valorizem estas conquistas (e penalizem os retrocessos). Ou seja, é preciso uma harmonização entre as várias áreas de política em torno de uma visão conjunta sobre para onde caminha a economia.
Ao perder-se essa matriz social, as populações mais desfavorecidas têm sido mais atingidas ao longo do tempo por esta falta de redistribuição. Se por um lado os países menos desenvolvidos têm cada vez mais dificuldades em navegar no sistema financeiro internacional para investir no bem-estar das suas populações, mesmo nos países desenvolvidos tem-se vindo a “perder qualidade de vida todos os dias”, nota Maria João Rauch, gerando um descontentamento visível em protestos como os coletes amarelos, em França, ou a ascensão de partidos de direita populista ou até mesmo de extrema-direita na União Europeia.
Também nas questões ambientais se vêem as limitações da forma como medimos a saúde das nossas economias, “chegando ao ponto ridículo de que, quando se cortam florestas na Amazónia, o PIB do Brasil sobe, porque estamos a produzir mais”. “Dá cabo do planeta, mata gente, mas não faz mal, porque faz subir o PIB.”