Poeta e dramaturgo, irlandês, William Yeats (Dublin,1865 – Menton, França,1939), cuja poesia revisito assiduamente, foi Prémio Nobel da Literatura, em 1923. Politicamente controverso, sobressaiu, no entanto, na defesa da liberdade da Irlanda, tendo inclusive sido membro do Senado irlandês (República da Irlanda), em 1922, após a guerra anglo-irlandesa (1919-1921) da qual o seu país saiu vencedor, mas cuja unidade geográfica continua por acontecer.
No estudo de Fernando Pessoa, com os meus alunos do ensino secundário, foram lidos alguns dos poemas de Yeats, em aula, em paralelo com os de Ricardo Reis, incidindo sobre os efeitos da passagem do Tempo, a velhice e a proximidade da morte. Temas caros aos dois poetas, contrapondo-se, no entanto, a acentuada revolta e violência lexical de Yeats ao estoicismo e aparente calma e resignação de Ricardo Reis.
Não querendo truncar o poema de Yeats, que traduz uma experiência que poderá ser ou vir a ser a de qualquer um de nós, decidi-me pela sua transcrição integral. Em comum com Ricardo Reis, a reacção de impotência perante algo que nos magoa em excesso. Obedeço à forma estrófica porque só assim, e a meu ver, é possível ler com atenção o poema:
As lamentações de um velho pensionista
Embora me abrigue da chuva
Sob uma árvore quebrada,
A minha cadeira era a mais próxima do fogo
Em todas as reuniões
Onde se falasse de amor ou política,
Antes de o Tempo me ter transfigurado.
Embora os jovens ergam de novo barricadas
Para uma conspiração
E desvairados tratantes gritem a sua vontade
Contra a humana tirania,
As minhas meditações pertencem ao tempo
Que me tem transfigurado.
Não há mulher que volte o rosto
Para uma árvore quebrada
E, todavia, as belezas que amei
Conservo-as na minha memória;
Cuspo no rosto do Tempo
Que me tem transfigurado.
Cuspo no rosto do Tempo / Que me tem transfigurado – os dois versos que expressivamente terminam o poema, e cuja portentosa riqueza estilística, acumulada em metáfora, personificação e imagem, acentuam a desmedida intensidade do conflito interior do poeta, a impotência de se libertar do Tempo intransponível do qual se sente prisioneiro.
Relevo o gesto de cuspir, que na infância me foi familiar, e do qual alguns leitores terão certamente memória. Presenciei-o várias vezes entre companheiros de brincadeira quando se zangavam a valer e confesso que sempre me arrepiei com a veemência do gesto. Um momento de grande tensão que parecia atenuar-se através do imediatismo de cuspir, arrastando nesse acto a expressão de toda a raiva e revolta sentidas. Tenho nítido na memória o que vi e sempre pensei não ser capaz de imitá-lo.
Lembremos agora o que se tem passado, há longos meses na Palestina, mais especificamente em Gaza, norte e sul, tudo em “nome de uma legítima defesa” do governo de Netanyahu, que ousou utilizar sobreviventes do Holocausto, numa indescritível falta de respeito e de dignidade por quem viveu um sofrimento que pessoa alguma será capaz de imaginar.
Caracteriza-se essa “legítima defesa”, por violência extrema, física e psicológica, dirigida contra civis palestinianos, encurralados, famintos, sedentos, doentes, eternos mendigos e peregrinos sem santuário, a quem ninguém acode, e apesar dos discursos nauseantes dos habituais contempladores da dor humana, cujos nomes bem conhecemos.
Revelam-se valas comuns, imagens de crianças com a pele mirrada de tanto sofrimento pela fome e pela sede e falta de cuidados médicos, gritos de desespero, mulheres grávidas abandonadas à sua sorte porque o hospital colapsou, recém-nascidos que morrem dias depois, homens baleados pelo simples facto de, em aflição máxima, procurarem comida ou a total impossibilidade de improvisar o que quer que seja para uma ínfima defesa da vida. Tudo é para além do concebível, na Faixa de Gaza.
A má-consciência, que conduz ao uso do absurdo, acusa de anti-semitismo todos os que se insurgem contra esta situação, com destaque para a política norte-americana, na sua desenfreada e obscena venda de armas (assim foi sempre!) que dizimam indefesos e famintos. “Anti-semitas” são igualmente os milhares de Israelitas que se manifestam em Telavive, ou os europeus em variadíssimas cidades ou os estudantes norte-americanos, acampados nas suas universidades.
Benjamin Netanyahu organizou uma chuva de panfletos, como forma de informar os habitantes de Gaza de que “chegou a hora de evacuação”. “Os seus amigos” vão dizendo que é preciso pensar bem, antes de avançar, não se questionando sequer sobre a pergunta que se impõe: Para onde?
Face ao que tenho visto, ouvido e lido, sem qualquer possibilidade de intervenção que não seja através da escrita, presenciei-me mentalmente a cuspir sobre estes homens, de geografias várias, que massacram ou apoiam cumplicemente o massacre, em Gaza.
O que pensava ser impossível em mim – o gesto de cuspir – aconteceu perante a situação de carnificina na Palestina, perpetrada por orgulhosos e sorridentes algozes que se mantêm indefinidamente activos e apoiados. Pela primeira vez, pude sentir e compreender interiormente o significado dessa reacção, e não me arrepiei com o meu gesto.