Na véspera do talvez mais importante dia da nossa história recente, o Capitão Salgueiro Maia dirigiu-se aos seus soldados com uma frase por muitos hoje conhecida. Falava-lhes ele de diversas modalidades de estados: os estados capitalistas, os estados socialistas, e “o estado a que chegámos”. Aproveitemos, pois, a deixa, e falemos do estado a que chegámos.
Em sete meses de brutal campanha, envolvendo um enorme esforço militar, diplomático, e de relações públicas, o Estado de Israel logrou fazer aquilo que até há pouco tempo muitos céticos – e neste grupo me incluo – pensavam impossível: reduzir mais de 350 quilómetros quadrados a um monte de cinzas. Em sete meses, por via de incursões e bombardeamentos, com falsas promessas de locais seguros, e sob a tácita concordância do Ocidente, o governo de Netanyahu arrasou a faixa de Gaza, vitimando pelo caminho mais de 35,000 seres humanos, e desalojando quase dois milhões. À medida que os Palestinianos são empurrados para sul, as forças israelitas apertam o cerco e, ao arrepio das leis da guerra, suposta fronteira final que tece as regras do conflito armado, prosseguem na sua incessável barbárie, até hoje sem fim à vista.
Ao longo de sete meses, como que num assombrante pesadelo coletivo, o mundo assistiu incrédulo ao concretizar daquele que há muito era o desígnio dos radicais do governo israelita, o de erradicar a Palestina e os que a habitam. Perante o que ficará para a história como o primeiro genocídio transmitido em direto, não há como não nos rendermos à crueza dos factos. Uma vez mais, face ao impensável a desenrolar-se debaixo das suas barbas, a Europa e o mundo ocidental respondem com a habitual e insustentável letargia. Como resultado da sua incompreensível inação, é, de novo, tarde demais. Tarde demais para os milhares de inocentes colhidos pela implacável ofensiva de Israel. Tarde demais também para milhões de desalojados, que talvez não voltem a ver as suas casas e famílias. E tarde demais, talvez, para os que sobreviverem à desgraça: sobreviverão eles ao que virá depois, e a quem lhes deitar a mão?
Perante este triste quadro, resta saber se será tarde demais para agir e procurar alguma redenção no meio do caos. Antes de avançar, desengane-se quem pensar que daqui sairá palavra que vise inocentar o Ocidente. Porém, apesar do confrangedor falhanço das nações desenvolvidas, temos testemunhado acontecimentos nas últimas semanas que serão, talvez, um sinal de mudança. É o caso da enorme vaga de protestos em várias cidades europeias que junta milhares de cidadãos, tendo particular adesão, entre outros, de estudantes do ensino superior. De facto, apesar da recorrente repressão policial, demasiadas vezes no encalço das pessoas que se juntam por causas justas, um pouco por toda a Europa os cidadãos manifestam veementemente a sua oposição ao massacre em Gaza. Nesta senda, importa também salientar as dezenas de universidades europeias que anunciaram a suspensão de parcerias com universidades israelitas, movimento que parece ganhar alguma tração também nos Estados Unidos.
Em seguida, também a nível institucional se verificam importantes mudanças. No dia 20 de maio, o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou a sua intenção de pedir a emissão de mandados de captura para Netanyahu e o seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, em virtude das responsabilidades dos mesmos pelos crimes de guerra e contra a humanidade praticados em Gaza. Na mesma semana, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou, no seguimento dum pedido da África do Sul, a suspensão da ofensiva militar em Rafah, a sul da Faixa de Gaza.
Finalmente, e de particular importância, a 28 de maio, Espanha, Irlanda e Noruega reconheceram formalmente a Palestina enquanto Estado independente, juntando-se assim a mais de 140 países que já reconheciam aquele Estado. Este último desenvolvimento, ainda que peque por tardio, assinalará porventura uma essencial mudança de paradigma, esperando-se que vários Estados Membros da União Europeia sigam o exemplo.
Por si só, os elementos acima elencados são incipientes. Se é verdade que alguma pressão internacional aumenta, é também verdade que, por enquanto, Israel ri-se na cara do mundo e larga, com arrepiante impunidade, bomba após bomba sobre tendas em Rafah. Bombas essas, por sinal, em larga medida fornecidas por Washington e Berlim, sendo de notar a gentil dedicatória feita pela ex-candidata presidencial Nikki Haley num dos obuses do arsenal israelita.
Face ao exposto, e perante a indizível realidade, chegou o momento de escolher entre o que é fácil, e o que está certo. Assim, é urgente que o Governo português siga o exemplo da Irlanda, Espanha e Noruega, e reconheça assim que possível o Estado da Palestina. É urgente que os Estados Membros também o façam, e é urgente que a UE, se pretende estar à altura do pedestal em que permanentemente se coloca, tome as medidas necessárias para travar o massacre. Só assim poderemos acabar com o estado a que chegámos, e assegurar o Estado que está por vir.