Quem sabe disso está sempre a dizer que o Douro é magnífico e que o seu, nosso, vinho do Porto é um tesouro, um vinho impossível e um legado de várias gerações, que impuseram às escarpas insanas e ao xisto da região a cultura da vinha e do vinho. Mas di-lo no seio de pares e de gente que sabe de vinho. Quando devíamos estar a gritar aos quatro ventos que o Porto (o vinho) tem segredos que os do (vinho do) Porto desconhecem, que este vinho fortificado surpreende mesmo quem já não espera ser surpreendido — não é o nosso caso, atenção — e que é muitas vezes um quebra-cabeças. Seja um LBV (Late Bottled Vintage) de 1983 que do nada aparece, qual intruso, numa prova de categorias especiais e ombreia com um vintage de 1977, seja por um Porto branco muito velho que, em prova cega, ninguém diria ser Porto.
Paulo Cruz, o organizador militante do Extravaganza, essa grande escola de vinhos fortificados de Portugal (já não são só Portos, embora este ano eles tenham sido o forte do programa), costuma dizer “If you think you know Port… think again!” (“Se pensas que conheces o vinho do Porto… pensa outra vez!”), epígrafe que dá cor a uma das paredes do seu Bar do Binho, no centro histórico de Sintra, a poucos metros da Casa dos Penedos, onde decorreu a edição deste ano do evento nascido em 2001. O Extravaganza é um evento exclusivo. Não pelo preço das provas (200 euros por prova, para conhece doze vinhos literalmente de outro mundo), mas porque Paulo gosta dele assim, intimista e dedicado, e não quer abrir mais vagas ou acrescentar outro dia ao programa. Os seus habitués, uma família já, põem as datas no calendário de um ano para o outro, não falham uma e ficam pasmados a cada apresentação inédita.
Para além de muitas surpresas e alguns quebra-cabeças — todos vinhos raros; a maioria apenas disponível nas colecções privadas das empresas de vinho do Porto; alguns nunca antes dados a provar assim, ao público em geral —, o Extravaganza contou com a apresentação de dois tawnies de 50 anos, uma das duas categorias recentemente criadas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto. Estava garantida uma experiência rara.
Pequeno produtor, grandes Portos
A primeira surpresa foram os Portos elegantes, tipo luxo silencioso, da Andresen, sempre diferentes. Entre uma meia centena de enófilos, poucos conheciam os vinhos da casa que prefere fazer colheitas a vintages e que é hoje dirigida por Carlos Flores. Portos frescos, envelhecidos em Vila Nova de Gaia, vários engarrafados de propósito para a prova da última sexta-feira, todos passam “o teste do segundo copo”, como lhe chama o engenheiro electrotécnico, a quem “não cabia um feijão” quando o pai lhe disse “decide tu”. O primeiro vinho em que Flores tomou a decisão de declarar ou não vintage… é um colheita. O Andresen Colheita 1991, nariz fabuloso e uma frescura que parecemos sentir para sempre, abriu uma prova magnífica de Portos com uma acidez que pica e um bom balanceamento entre essa frescura e a doçura.
O 91, por exemplo, tem bem mais de 100 gramas de açúcar por litro e isso não se percebe na prova. “Vamos sempre à procura disto, mas respeitando sempre a natureza dos vinhos”, explicou o produtor, que tem a enologia dos seus Portos entregue a Álvaro Van Zeller. Os Colheita de 1980 e 1982 deram o mote para uma discussão em torno de como os tawnies, que à partida pensaríamos que já evoluíram tudo o que tinham a evoluir quando são engarrafados, também mudam com o tempo de garrafa. O 1982 não estava “tão gordo” como Carlos Flores o recordava e o 1980 estava mais untuoso, de resto, mais parecido com o 1991, num perfil mais potente e envolvente, sempre elegante. E isso surpreendeu o próprio produtor.
Magnífico o Colheita 1970, nariz que nos traz à memória o mel de cana e o iodo de outro terroir generoso (a Madeira) e um extraordinário casamento entre doçura e acidez. “Internamente”, chamam-lhe “a bomba”. O segredo, diz o homem da Andresen, são os “envelhecimentos prolongados, mas muito controlados” que se promovem na casa fundada em 1845 (e adquirida pelos Flores Santos em 1942), e onde este vinho já só está disponível na “reserva de família”. Carlos Flores é um homem que acredita que, na vida, o maior luxo de todos é “a gente poder dizer não”, neste caso “não” a engarrafar tesouros como estes, mas, atenção, do Colheita 1968, igualmente um grande vinho, de um ano de que não se fala muito, ainda há “quantidades limitadas”.
Engarrafado em 1980, o Colheita 1937 seduz pelo bouquet inebriante e complexo — com notas redutivas, aquele apetrolado dos brancos velhos, amêndoa, mas também um lado floral — e peca, se pudermos falar em pecados nestes vinhos fabulosos, por não ter tanta frescura na boca como aquela por que salivávamos.
Seguiram-se dois centenários: o Colheita 1910 e o Colheita 1900. Era juntar o nariz incrível do primeiro à boca vivíssima do segundo, mas isso é discutir ninharias quando estamos perante vinhos que nasceram na Monarquia, passaram mais de 100 anos dentro do casco e chegam assim, enormes, ao século XXI. Se foram refrescados? “Aqui ou ali”, respondeu Flores no geral sobre os vinhos em prova, e com aguardentes envelhecidas de propósito para corrigir o vinho do Porto da casa. Ah, já escrevemos que esta foi a primeira vez que a Andresen mostrou estas preciosidades numa prova em Portugal? Pois é. E a segunda no mundo.
Dois novos 50 anos
Quer a Graham’s — prova acalorada e discussão apaixonada, no sábado —, quer a Rozès — no domingo, com o enólogo e comunicador nato Manuel Henrique Silva — levaram ao Extravaganza os seus tawnies de 50 anos, que, como foi explicado uma e outra vez no evento, não são Portos em que a idade média dos vinhos que compõem o lote seja 50 anos. Não realmente. Mas, muitas vezes, andará perto. Estes tawnies com indicação de idade reflectem antes um estilo que se convencionou ser de 10, 20, 30, 40, 50 ou mais anos (categoria Very Very Old).
Ambos grandes vinhos (como atestam as notas de prova), mas em registos diferentes. O Graham’s Porto Tawny 50 Anos (a Symington levou à prova uma amostra de casco) é um vinho intenso e poderoso, que imediatamente o nosso palato colocou entre os melhores da dezena que já prováramos. Ao passo que o da casa de vinho do Porto detida hoje pelo grupo Vranken-Pommery Monopole é mais contido, sempre num registo de elegância, mais sóbrio, que a Rozès procura. Houve quem lhe chamasse “tímido”. Nós achamo-lo quase perfeito.
Na primeira metade da viagem que a Symington Family Estates promoveu até ao ano de 1963 (a prova chamava-se “Seis décadas de Portos marcantes”), aprendemos que um vintage pode cheirar a manga, uma nota atípica neste tipo de Porto (e, diga-se, nos vinhos tintos em geral). Não havendo outra explicação, diz Charles Symington, cujo bisavô chegou da Escócia em 1882 para trabalhar na Graham’s, que o aroma original do vinho The Stone Terraces 2011 pode ter explicação nos socalcos dos Malvedos que estão voltados a Nascente e onde os muros de xisto absorvem calor de dia para o libertarem à noite. Um vintage extraordinário, com fruta viva e uma frescura que se cola aos dentes, e que tem tudo para envelhecer muito bem durante 30 ou 40 anos e que beber agora é… bem, é uma interessante experiência. Afinal, para entender para onde se encaminham estes vinhos é preciso conhecê-los no caminho.
Apesar de não ser comum haver colheitas jovens na Graham’s, a ligação à Família Real Britânica e à sua Royal Wine Cellar tem feito sair para o mercado alguns vinhos de celebração, como o Colheita 2003, originalmente lançado com o nome First Flight (primeiro voo) e que será relançado este ano, anunciou a Symington em Sintra. Percebe-se porquê. Tem estrutura, nariz e o necessário equilíbrio entre doçura e acidez, uma acidez vibrante. Cheira a pêssego e, como o descreveu Manuel Rocha (o master blender da casa, há 46 anos na Symington e quase quase a reformar-se), “àquele sargaço na maré vaza”. Cheira mesmo.
Foi “muitíssimo bom”, de resto, o ano de 2003, de tal forma que permitiu ir por diferentes caminhos, como se percebeu no vintage do mesmo ano. O colheita que provámos foi engarrafado em 2023. No caso das colheitas, as empresas podem ir fazendo sucessivos engarrafamentos, não é como os vintage (envelhecem em madeira durante dois anos e são engarrafados logo, vivendo o resto da sua longa vida na garrafa) e isso muda o mesmo vinho a cada novo lançamento. No caso da Graham’s, é essa a justificação para o uso do vidro branco. Os seus tawnies são lançados para beber logo (que é como quem diz nos dois, três anos seguintes).
Filhos da ditadura e da revolução
De 1974, um vinho histórico, ainda da Symington, e que nos ficará na memória sobretudo por essa história. Filho do ano da Revolução de Abril e de uma vindima necessariamente complicada, chega aos dias de hoje pelas mãos de três gerações: Michael Symington acompanhou a campanha em que a empresa não sabia o que faria com as uvas ou quanto tempo mais existiria empresa, Peter supervisionou o envelhecimento do vinho em casco, passando depois essa responsabilidade ao filho Charles. “Graças a Deus que os nossos viticultores acreditaram em nós. E o 74 acabou por ser um ano bastante bom. Veio a seguir ao 73, que foi um desastre”, recorda o actual responsável pela enologia do grupo que também tem as marcas históricas Cockburn’s, Warre’s e Dow’s.
Precisamente da Dow’s, “uma coisa linda” a fechar a prova da Symington: o vintage de 1963, nariz de ginja e uma frescura incrível. Em 2001, da outra vez que a Symington tinha estado no Extravaganza, coisas lindas como estas iam todas lá para fora. Apesar de não termos essa noção, a realidade mudou alguma coisa e, para Charles Symington, “é incrível como as coisas mudaram”. Hoje, partilhou, “as categorias especiais são sobretudo vendidas em Portugal”.
Não deixa de ser sintomático que chamassem outrora ao Colheita de 1950 da Rozès “the ladies vintage”. O que é certo é que este vinho, nascido no Estado Novo, a fazer 74 anos, parece um blend. Ao que parece, o Inverno frio de 1950 deu vinhos de grande harmonia, subtis, como este, que a casa que tem Manuel Henrique Silva à frente da enologia dos seus Portos engarrafou em 2018. De um perfume impregnante, oferece uma frescura imensa, que pica à medida que o vinho percorre o nosso palato (é da acidez volátil, ou vinagrinho, que o vinho tem) e que mascara a doçura do vinho (não sentimos as suas 156 gramas de açúcar por litro), e tem um final longo, com sabor a rebuçado de café. Foi a nossa escolha na hora de, terminada a prova, ficarmos de pé mais uns minutos à conversa.
A Rozès levou ao Extravaganza outros colheitas, incluindo coisas mais recentes, como os colheitas de 2015 e 2011 (afinal, o consumidor parece ter descoberto os tawnies velhos e a Rozès quer acautelar resposta no futuro), alguns vintages e um “outsider”: um LBV de 1983 (os LBV envelhecem mais tempo em madeira e são engarrafados ao fim de cinco anos, considerando-se que são Portos prontos a beber mais cedo). Da cor daqueles pores-do-sol mais rosados do que laranja, no nariz ressaltam umas notas anisadas, a boca, essa, é um espectáculo, de uma doçura contida, cremosa, elegante e com tudo bem casado com a acidez. Um vinho que despertou a curiosidade de todos na sala e que Manuel Henrique colocou na prova propositadamente para “desmistificar a ideia de que o LBV é um vintage para beber rápido”. Que é como quem diz, reforce-se, mais cedo. Ou não vá agora o leitor pensar que estes vinhos são para beber assim de uma assentada. Como fez questão de notar o administrador da Rozès António Saraiva, para descobrir e provar o céu devia ser o limite, mas beber é com moderação!
No vintage de 1977 ainda se sentem aromas primários — a fruta, a ginja, está lá, mais compotada, é certo —, o que é impressionante, ao fim de 47 anos! No de 1997, há um tanino muito vivo ainda, frescura e fruta. E, a propósito do 2007, ouvimos falar de um período a que os ingleses chamam “the down fase”. Há uma altura em que, já depois de engarrafados, os vintages perdem os aromas, não se reconhecem. “Até se adaptarem à sua nova casa [a garrafa]. Podem ser seis meses, pode ser um ano e às vezes três.”
Nos tawnies, para além do novo 50 anos, claro, impressionaram a colheita da Rozès de 1935, bouquet incrível, a caramelo, frutos secos, um conjunto harmonioso e um privilégio — como é que os antepassados do Douro actual “fizeram este vinho com as condições que não tinham”? Dá que pensar e o Porto também é isso —, e o Very Very Old White, que no caso da Rozès “roça os 100 anos”, apenas 180 engarrafamentos (já aqui escrevemos sobre ele em Novembro).
A propósito dele, só mais uma pequena lição: todas as casas de vinho do Porto vinificavam e envelheciam brancos para usar nos Portos de lote, até a lei mudar; a partir daí os Portos brancos e em concreto os vinhos velhos começaram a ter outro valor. Isto apesar de não vermos muitos Portos brancos velhos no mercado. De tal forma que na degustação cega organizada à margem destas provas mais ‘sérias’, digamos, orientada por Paulo Cruz e por Paulo Bento, amigo conhecedor que há uns anos sensibilizou Cruz a estender o Extravaganza aos Madeira, ninguém acertou nos brancos muito velhos da Vallegre e da Andresen. Que era Carcavelos, que eram tawnies, que eram Madeira…
Eram “dois bonificadores”, amostras de casco, vinhos com cerca de 85 anos, que entram nos lotes de outras preciosidades. Depois de saber, lá chegamos ao nariz do Porto. Uma prova muito curiosa e didáctica, talvez a mais didáctica delas todas, e com o bónus de incluir harmonização com chocolates criados por Francisco Siopa (Penha Longa) de propósito para aqueles vinhos.
Quando Manuel Henrique chegou à Rozès, há uns 30 anos, a marca não era conhecida cá dentro (não muito, pelo menos, não como as outras); há dias a revista Grandes Escolhas elegeu o técnico como enólogo de vinhos generosos do ano (2023). Low profile, fala num “trabalho de arte” e da “arte de [o fazer em] equipa”. “Porque os vinhos às vezes subjugam-nos e com alguém em quem confiamos ao lado conseguimos perceber isso.” No que diz respeito ao vinho do Porto, surpresas e quebra-cabeças não são só para quem sabe pouco, portanto.
Nome Dom Rozès 50 Anos
Produtor Rozès
Castas Mistura de castas
Região Douro
Grau alcoólico 20%
Preço (euros) 320
Pontuação 96
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova Um 50 anos que sai aos seus, neste caso ao estilo da casa Rozès, muito mais elegância e equilíbrio, a proporcionar uma percepção de doçura sempre abaixo do açúcar que os vinhos realmente têm. Um vinho fino, não no sentido dos vinhos finos do Douro de outros tempos, mas no sentido de ser todo ele delicadeza sem deixar de ter força. De um dourado envelhecido, com os laivos esverdeados que nos Portos velhos é normal encontrar, oferece um nariz concentrado, com caramelo, frutos secos e notas de envelhecimento em madeira, e uma boca plena, superelegante e com uma excelente acidez. Muito persistente. Quase perfeito. Foi lançado em Dezembro de 2023, com um embrulho à altura, já que vem numa garrafa lindíssima, uma espécie de demijohn mais pequenino, de 1 litro, produzido com vidro soprado e selado à mão (engarrafaram-se 2.500), obra de arte que faz jus à arte da equipa de blenders liderada por Manuel Henrique Silva.
Nome Graham’s Porto Tawny 50 Anos
Produtor Symington Family Estates
Castas Mistura de castas
Região Douro
Grau alcoólico 20%
Preço (euros) 500
Pontuação 97
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova É uma novidade, que a Symington só prevê lançar em Maio de 2024, e foi apresentado em primeira mão no último Extravaganza (amostra de casco). De cor mais concentrada, pelo envelhecimento, é um 50 anos intenso, que impressiona mais pelo power que oferece logo ao primeiro encontro do que pela finesse. O nariz vai ao pêssego, tem também algo cítrico, é fresco, e traz-nos discretas notas de flores brancas e um ligeiro verniz. O tal poder percebe-se primeiro no ataque doce, que rapidamente uma acidez pungente vem domar. Textura aveludada, final longuíssimo. Um belíssimo 50 anos, que nasce de vinhos envelhecidos e acompanhados por pelo menos duas gerações da família, por Peter e nos últimos anos pelo seu filho Charles. É do ano de nascimento de Charles — 1969 — um dos vinhos que entra no lote deste tawny com indicação de idade, o “CAS Reserve”; o outro é um lote feito em 1982 de vinhos dos anos 1970 e 1973 e aos quais os ‘anjos’ (ou a evaporação) levaram 50% nas décadas que se seguiram à de 80. Virá daí a sua concentração excepcional. Só foram engarrafadas 2.000 garrafas.