Voltámos a tomar conhecimento de conversas, que não deveríamos conhecer, através da divulgação ilícita de escutas telefónicas. As estações TVI e CNN anunciaram ter acesso exclusivo ao processo da Operação Influencer e, dessa forma, às escutas. Não se percebe muito bem o alcance e o significado dessa exclusividade, mas esse não é certamente o problema principal.
O conteúdo das escutas revelado é manifestamente estranho à investigação da Operação Influencer. A partir daqui devemos perguntar porque não foram apagadas. E a razão terá sido um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 16 de junho de 2021, o qual – após um recurso do Ministério Público (MP) contra a decisão do então presidente do STJ de mandar destruir duas escutas telefónicas que envolviam António Costa – determinou que as escutas se deveriam manter nos autos, mesmo sendo “manifestamente estranhas” à investigação e ao processo. Esta decisão acabou por repetir-se relativamente a novas escutas, ou seja, o novo presidente do STJ, Henrique Araújo, terá decidido nos mesmos termos, em observância ao acórdão de 16 de junho de 2021.
Não era esta a orientação do STJ. Chegou a ser ordenada a destruição de escutas telefónicas que envolviam José Sócrates com fundamento na sua irrelevância para a investigação em causa. Este assunto merece reflexão, sobretudo num país em que é prática corrente a violação do segredo de justiça e a correspondente divulgação de matérias sigilosas nos órgãos de comunicação social. O risco existe sempre e, por vezes, concretiza-se.
A informação que obtivemos tem sobretudo relevância política e só muito remotamente relevância criminal. À luz do conteúdo divulgado, no caso da conversa de António Costa com João Galamba sobre o despedimento da CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, poderíamos equacionar estar perante um crime de abuso de poder. Mas digo-vos, enquanto jurista, que não é nada óbvio.
A decisão de não destruir escutas telefónicas que não estão relacionadas com nenhum processo judicial e que têm sobretudo conteúdo político é altamente discutível. Além disso, é arriscada, no sentido em que é provável que venham a ser divulgadas. O perigo de guardá-las concretizou-se, como era previsível.
Quem permitiu a divulgação destas escutas telefónicas? Não sabemos. Mas há uma coisa que sabemos: quem tinha a responsabilidade de as manter em sigilo processual. E aqui tem de se apontar o dedo ao MP. Não é a primeira vez que acontece. A violação do segredo de justiça constitui crime. É de uma gravidade extrema para a credibilidade da Justiça assistirmos regularmente a violações desse segredo sem que se apurem os infratores e sem que existam consequências.
Pior ainda é o facto de esta divulgação de escutas telefónicas parecer uma represália do MP pelo infeliz desenrolar do processo Operação Influencer, que deixou esta magistratura fragilizada e mal vista. É gravíssimo que os portugueses concluam que o MP prossegue estratégias e táticas destas para atingir os seus propósitos e que esses propósitos nem sempre coincidem com o que está na lei.
O momento escolhido para a divulgação das escutas foi desastroso. Também se pode dizer que foi exímio. Depende da perspectiva de cada um. Certo é que pode ter fragilizado a candidatura de António Costa à presidência do Conselho Europeu. Acabámos de saber que os contornos jurídicos do envolvimento de António Costa na Operação Influencer são assunto na Europa e que foi uma das razões para António Costa ainda não ter sido escolhido.
Não deveríamos mesmo ter sabido do conteúdo destas escutas. Versam assuntos e decisões de natureza política, são conversas que deveriam ter sido apagadas. Mas agora é tarde demais. Já as conhecemos e cada um de nós não deixará de fazer a sua avaliação das palavras de António Costa contidas nas gravações e das motivações que revelou para ter defendido o despedimento da CEO da TAP. Não são as que estão no Código do Trabalho, isso é certo. Os danos para a credibilidade da classe política, e para o próprio Estado de Direito, decorrentes de os cidadãos terem acesso ilícito a informações avulsas, descontextualizadas e sigilosas, são irremediáveis. Os responsáveis por isto não podem ser poupados a críticas.
Talvez percebam melhor o que está em causa e o bem maior que não protegeram quando estivermos todos a apontar o dedo à classe política, à Justiça e uns aos outros. Quando nos dedicarmos a chafurdar na lama. Há quem já tenha começado.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico