Uma reportagem do New York Times sobre a chegada da internet de alta velocidade a uma aldeia remota da Amazónia acabou por trazer um alerta sobre o lado sombrio da própria web.
Em abril, caminhei mais de 80 quilómetros pela floresta amazónica para visitar as aldeias remotas do povo Marubo. A etnia de dois mil indígenas tinha-se conectado à internet de alta velocidade recentemente, e eu queria entender como é que isso tinha afetado as suas vidas.
Numa visita de uma semana, vi como eles usavam a internet para comunicar entre as aldeias, conversar com pessoas queridas distantes e pedir ajuda em casos de emergência. Muitos Marubo também me disseram estar preocupados que a conexão com o mundo exterior abalasse a sua cultura, a qual eles vêm preservando por gerações na floresta. Alguns idosos reclamaram de adolescentes ligados aos telemóveis e a participar em grupos repletos de rumores e a ver pornografia.
Como resultado da apuração, a reportagem que o New York Times publicou foi, em parte, sobre a introdução do povo Marubo aos males da internet.
Mas, após a publicação, essa perspectiva tomou uma dimensão totalmente diferente.
Na semana passada, mais de cem sites em todo o mundo publicaram manchetes que afirmaram falsamente que os Marubo se viciaram em pornografia. Junto a essas manchetes, os sites publicaram imagens do povo Marubo nas suas aldeias.
O New York Post, um tabloide de Nova York, foi um dos primeiros a dizer, na semana passada, que o povo Marubo estava “viciado em pornografia”. Rapidamente, dezenas de meios seguiram esse mesmo caminho. A manchete do site TMZ talvez tenha sido a mais contundente: “CONEXÃO DE TRIBO À STARLINK PROVOCA VÍCIO EM PORNOGRAFIA!!!”
O Post e o TMZ não responderam aos pedidos de posicionamento feitos pelo Times.
Manchetes parecidas proliferaram em todo o mundo, inclusive em países como Reino Unido, Alemanha, Austrália, Índia, Indonésia, Malásia, Turquia, Nigéria, México e Chile. A RT, media estatal russa, publicou um texto com a alegação em árabe. Foram inúmeros os vídeos, memes e posts nas redes sociais.
No Brasil, o boato espalhou-se rapidamente, inclusive nas pequenas cidades amazónicas onde alguns Marubo hoje vivem, trabalham e estudam.
O povo Marubo não é viciado em pornografia. Não havia nenhuma sugestão disso nas aldeias, nem na reportagem do New York Times.
Em vez disso, a reportagem citou a reclamação feita por um líder Marubo de que alguns adolescentes tinham partilhado pornografia em grupos de WhatsApp. Isso é especialmente preocupante, disse, porque a cultura Marubo desaprova até mesmo o beijo em público.
Muitos sites que distorceram essa informação são agregadores de notícias, o que significa que o seu modelo de negócios gira, em grande parte, em torno do reempacotamento de reportagens de outros veículos jornalísticos, muitas vezes usando manchetes sensacionalistas com o objetivo de vender anúncios.
Como esses sites também divulgam links para a reportagem original, estes geralmente estão protegidos por lei, mesmo que deturpem o conteúdo.
Hoje, esses tipos de sites e manchetes enganosas tornaram-se mais uma parte da economia da internet. Para um usuário experiente da web, essas táticas são conhecidas.
Para os Marubo, porém, a experiência foi desconcertante e enfurecedora.
“Essas alegações são infundadas, mentirosas e só refletem uma corrente ideológica enviesada que desrespeita a nossa autonomia e a nossa identidade”, disse Enoque Marubo, líder Marubo que trouxe a Starlink à sua aldeia, num vídeo postado nas suas redes no domingo à noite.
Segundo este protagonista, a reportagem do Times enfatizou excessivamente os aspectos negativos da internet e “resultou numa disseminação de uma visão distorcida”.
Alfredo Marubo (todos os Marubo usam o mesmo sobrenome), líder que disse na reportagem do Times que estava preocupado com a pornografia, também se manifestou nesta terça-feira num comunicado por meio da sua associação indígena. Ele disse que as manchetes enganosas têm o potencial de gerar “exposições irreversíveis à imagem das pessoas e, por isso, nos sentimos expostos diante da má interpretação da notícia verdadeira”.
Eliesio Marubo, advogado e ativista pelos direitos indígenas, é uma das figuras mais conhecidas do povo Marubo. Por isso, quando as manchetes viralizaram, Eliesio disse que recebeu dezenas de milhares de mensagens e marcações em comentários nas redes sociais. Muitos ridicularizavam o povo Marubo, disse ele.
Eliesio disse que a reportagem abriu um debate importante sobre a chegada repentina da internet de alta velocidade a grupos indígenas remotos. Essa discussão mostra as promessas da internet, mas ilustra os seus perigos com a desinformação.
“A internet, de facto, traz muita facilidade”, disse ele, “mas ela também traz muita dificuldade”.