Enquanto discutimos outras coisas, Emanuel Macron e Olaf Scholz publicaram um artigo de opinião conjunto no Financial Times que é um resumo do que querem que seja o programa de trabalho da Comissão Europeia nos próximos cinco anos. (Se o critério fosse poder e dinheiro a ordem seria inversa, mas se o critério for quem tem liderado as ideias, a ordem está certa.) Seja como for, quando França e Alemanha falam sobre a Europa, convém estar atento. Até porque já não há Reino Unido para os contrariar. À primeira vista, parece tudo bem. O diabo, como de costume, está nos detalhes.
Macron e Scholz começam por dizer que “a Europa deve prosperar como um forte líder industrial e tecnológico, ao mesmo tempo que concretiza a ambição de tornar a UE no primeiro continente com impacto neutro no clima”. E como é que isso se faz? Nos últimos cinco anos, a estratégia foi a de acelerar para liderar a transição verde, convencidos de que lideraríamos as respectivas indústrias. Não está a acontecer. Nos painéis solares, a China é melhor. Na indústria automóvel, que é uma das mais fortes, que tanto emprega e que tanto valor tem na Europa, as marcas chinesas e uma marca americana ultrapassam as marcas europeias no preço ou na tecnologia. A solução são veículos elétricos, ou podem ser combustíveis alternativos para os motores de combustão em que a Europa é líder? Ainda estamos a tempo de ter esta discussão? E na aviação? E então, mantemos refinarias por cá ou não?
Dizem também que “com uma política industrial ambiciosa, podemos permitir o desenvolvimento e a implantação de tecnologias-chave do futuro, como a IA, as tecnologias quânticas, o espaço, o 5G/6G, as biotecnologias, as tecnologias líquidas zero, a mobilidade e os produtos químicos”. Muito bem, parece não sobrar quase nada. Mas como? Para ter liderar na IA, querem regular mais e primeiro, ou ter uma regulação mais flexível e aberta que os outros países? A competição com China e os estados Unidos faz-se também por aí. No 5G e 6G, quem e como se vai pagar o investimento em infraestruturas? São as operadoras de telefone e internet? As multinacionais de conteúdos que mais usam essas redes?
Mais à frente, um tema que anda a surgir há cinco anos, umas vezes mais outra menos disfarçadamente:
“Temos de (…) modernizar as nossas regras de concorrência tendo em vista a competitividade global”. Aqui já não é nada certo que seja muito bem. O que isto tem querido dizer é que para efeitos de autorização de fusões e aquisições e para efeitos de auxílios de Estado, o que conta é pensar na competição à escala global, mesmo que isso implique criar desequilíbrios internos na União Europeia. Os nórdicos não acham nada bem. Portugal também não tem achado. E o Parlamento Europeu, o que vai achar?
França e Alemanha dizem que querem “descarbonizar totalmente os nossos sistemas energéticos. E conseguiremos isso num mercado totalmente integrado e interligado”. Isso quer dizer que França vai finalmente abrir as ligações elétricas entre o mercado ibérico e o do resto da Europa? Devia haver alguma condicionalidade europeia nesse capítulo?
E quando defendem um “mercado financeiro europeu verdadeiramente integrado com os mercados bancário e de capitais”, incluindo a garantia dos depósitos à escala europeia, ou isso os alemães continuam a não querer?
E quando Berlim e Paris falam em “harmonizar aspectos relevantes (…) da legislação fiscal”, estão a dizer que a competitividade fiscal tem de acabar? Ou seja, subsídios, cada um dará os que pode, mas incentivos fiscais, cada um dará o que a Alemanha e França também derem?
Por último, por uma vez fala-se de fundos na discussão europeia e nada disso se discute por cá. Mal. Quando Macron e Scholz dizem que “deveríamos preparar o orçamento da UE para o futuro e dar maior prioridade aos investimentos em despesas transformacionais e em bens públicos europeus, trabalhando ao mesmo tempo na introdução de novos ‘recursos próprios’”, querem dizer o quê exactamente? Alteração das prioridades orçamentais, como já sugeriu o Comissário austríaco dos orçamentos? Retirar dinheiro da coesão? Da Política Agrícola Comum? Criar envelopes nacionais que depois cada Estado membro gere mais ou menos como quer, como o Comissário Hahn também sugeriu?