Os activistas pela justiça climática já estão fartos de ouvir falar da “transição justa” que, dizem, nem é transição nem é socialmente justa, além de não está a ser uma transição “verde”, acusam ainda. É uma das principais mensagens que ficam do 9.º Encontro Nacional pela Justiça Climática (ENJC), que entre 5 e 7 de Abril juntou 140 pessoas de todo o país em Boticas, distrito de Vila Real, para falar sobre os caminhos a seguir na luta climática.
O tom deste encontro de activistas ambientais e climáticos – ou “ecológicos”, como alguns preferem – foi dado logo pelo facto de ser a segunda vez que sai de Lisboa (no ano passado teve lugar em Coimbra) e a primeira fora de uma grande cidade. “Vivemos numa região isolada com um problema grande à nossa porta, para nós este encontro é muito importante”, nota Aida Fernandes, da associação Unidos em Defesa de Covas de Barroso. A região do Barroso, reconhecida como património agrícola mundial, será muito afectada pelos planos de extracção de lítio, mineral com grande importância para as baterias de produtos como carros eléctricos. “Para nós, a transição verde tem um sabor muito amargo”, lamenta Aida, uma agricultora convertida em activista, recordando um dos mantras da comunidade nos últimos anos: “Não à mina, sim à vida.”
Juntar mais de cem activistas numa cidade do interior tornou-se possível com o apoio da autarquia. O vereador Guilherme Pires, vice-presidente da Câmara Municipal de Boticas, explica que não houve dúvidas: “Foi só pedirem e nós demos”. A câmara tem sido uma das aliadas da população na luta contra a instalação de uma mina a céu aberto, explorada pela empresa britânica Savannah Resources. Num município onde a natureza sempre foi central para a prosperidade económica e para coesão social, as autarquias alinham com os activistas no entendimento de que, se não resistirem, serão os perdedores da tão apregoada transição energética.
Ordem de trabalhos
O encontro contou com painéis sobre temas desde a mobilidade e reforço da ferrovia até à mineração em mar profundo, passando pelas assembleias cidadãs ou a reflexão interna dos colectivos que têm causado “disrupção” em locais públicos.
Leonor Canadas, do Climáximo, partilhou com a plateia “o que significa viver em estado de emergência climática”, uma inquietação que, explica, a impele a “agir em conformidade” para quebrar a normalidade. Com cada vez mais relatórios a indicar pontos de não-retorno planetários, é para Leonor cada vez mais claro que os planos insuficientes dos países, na prática, “condenam à morte centenas de milhares de pessoas”. “A ciência tem implicações políticas”, alerta a activista. “Surpreender-me que não esteja a haver revoltas o tempo todo.”
O ENJC é altura também de partilhar a agenda de lutas. Entre 22 e 24 de Abril, por exemplo, o Climáximo está a preparar as “Assembleias de Abril”, junto ao Campus da Justiça, em Lisboa, enquanto 11 pessoas são julgadas pelo bloqueio túnel do Marquês. A 11 e 12 de Maio, decorrem as Jornadas pela Democracia Energética, em Lisboa. Na agenda deste ano também não poderia deixar de estar o acampamento em Covas do Barroso, em Agosto, onde há alguns anos activistas têm convergido para conhecer os desafios das comunidades locais e apoiar as acções públicas.
Uma lei por cumprir?
A associação Último Recurso veio falar sobre litigância climática, num momento em que está a estudar a possibilidade de um processo desta natureza contra as explorações de lítio. O argumento: a destruição de património natural, por mais que contribua para a transição energética, é contraditória com os objectivos de conservação do planeta.
A plateia no Auditório Nadir Afonso vai reagindo à medida que ouve falar sobre as responsabilidades do Estado português, tais como uma “exploração responsável dos recursos”, o facto de que “a população tem que fazer parte deste processo” ou a “melhoria das condições de vida das populações”. Na plateia, algumas das reacções mais exasperadas foram de Cheila Fernandes, que pediu mesmo a palavra no final da apresentação para comentar: “Qual foi a consulta pública que parou qualquer megaprojecto?”
Cheila, ou “Chei”, é uma das várias “filhas adoptivas” que o território ganhou nos últimos anos. Chegou ao Barroso quando percebeu que a serra do Gerês – a sua “catedral” – estava cercada por vários grandes projectos de mineração previstos para os próximos anos. Depois de participar num acampamento em Covas, ficou pela região. “O Parque Nacional está ameaçado e vai sofrer impactos se estas minas avançarem”, alerta, partilhando a missão que a fez mudar-se em definitivo de Lisboa para a aldeia de Campo do Gerês.
Complexidade ou contradição?
O encontro trouxe a sua quota de conversas espinhosas, num movimento que congrega lutas e causas complexas em que, apesar dos caminhos diferentes, o ponto de chegada é muitas vezes comum. Mas haverá o risco de que esta complexidade se transforme em contradição?
Os debates trouxeram a tónica para a necessidade de reforçar, dentro da questão climática, as preocupações ecológicas. Não é possível, por exemplo, falar apenas em electricidade 100% renovável sem ser claro sobre quais os limites ambientais dessa transição. Para Cheila Rodrigues, “esta reivindicação é perigosa para estas populações”, já que pode pode legitimar a exploração de minerais sem ter em conta a destruição como a que acontecerá no Barroso.
É preciso questionar os consumos e também, afirmam os activistas, a crença de que é possível crescer infinitamente e continuar a ser “verde”. “Onde é que nós vamos parar? Cada vez mais a destruir… Sabemos que o planeta não vai aguentar”, lamenta Nelson Gomes, de Covas do Barroso.
E a luta da população promete não parar. Cheila Rodrigues recorda com um sorriso as formações em desobediência civil que, em 2022, a levaram de aldeia em aldeia, culminando numa acção em que “encheram a entrada da Savannah” com sacos de terra retirada do lugar onde estarão as minas.
“Quebramos a barreira da urbe”
Ana Matias, da associação Sciaena, vê com entusiasmo a maior representatividade e diversidade de perspectivas deste encontro, por comparação aos anteriores. Uma das organizadoras do encontro deste ano, nota que o movimento finalmente conseguiu que os debates deixassem de estar tão focados nos grandes centros urbanos: “Este ano quebramos a barreira da urbe. Foi o ano em que mundo rural e o interior estiveram no centro da discussão”.
Mariana Riquito, outra das “filhas adoptivas” do Barroso, fez o remate do encontro recordando que “é pela defesa da Terra que aqui estamos, em solidariedade desde o mar profundo até às Covas do Barroso”, e contra a “falsa narrativa da transição energética”. “Que estejamos à altura de imaginar outros futuros e de colocar o cuidado da vida ao centro.”