As colecções estavam preparadas para entrar na passerelle. Faltavam duas semanas para a próxima edição do Portugal Fashion (PF) quando a organização fez saber, nesta terça-feira, que o evento estava cancelado por falta “dos apoios necessários”. Foi no mesmo dia que os criadores foram avisados de que não haverá semana da moda onde apresentarem o seu trabalho. “Devíamos ter sido avisados com muito maior antecedência”, lamenta Miguel Vieira, um dos nomes mais sonantes do calendário.
O criador fala do investimento necessário para fazer um desfile, que vai além da colecção. E explica que, no caso da sua marca, implica a produção de um maior desdobramento da quantidade de peças: “Por exemplo, quando se faz uma colecção para vender nos showrooms internacionais, produzo os sapatos de mulher em tamanho 37 e os de homem em 41. Mas, para fazer um desfile, é preciso produzir muitos mais tamanhos. É um investimento grande e estava tudo pronto”, lamenta.
Também Susana Bettencourt tinha a apresentação planeada e fala do constrangimento de ter de ligar a alguns patrocinadores a cancelar novamente, depois de já o ter feito em Março, quando a edição inicial foi adiada. “Estamos a ficar com um poder de negociar cada vez mais difícil, à medida que vai sendo cancelado. Podemos comunicar os patrocinadores nas redes sociais, mas quando há o Portugal Fashion por trás é muito diferente”, declara.
Victor Huarte faz eco do mesmo, contando que, “há várias semanas”, que vinha a “pressionar” a organização para confirmar a data de realização, enquanto agilizava a parceria de calçado para a sua apresentação na passerelle. “O desfile, mais do que o retorno económico, traz-nos visibilidade enquanto marca. Já tenho a colecção pronta desde Março para ser apresentada e agora vou ter de garantir o conteúdo de promoção, a fotografia ou o vídeo. É um investimento grande”, sublinha o jovem criador espanhol, radicado no Porto.
Confrontada com o cancelamento, tal como Huarte, Sílvia Rocha da Ahcor já está a pensar em alternativas para produzir o conteúdo de promoção da colecção, dado que organizar um desfile por sua conta não é exequível. “O Portugal Fashion é a principal plataforma onde apresento e comunico o que é a marca. É impraticável para mim criar a estrutura que vemos num desfile”, diz, fazendo alusão à equipa de bastidores, à contratação de modelos ou aos fotógrafos e videógrafos, além da imprensa internacional que se reúne naqueles dias no Porto.
“É uma plataforma de apoio para criar formas de conexão com os clientes e o público. Fica tudo mais dispendioso para cada marca e não conseguimos fazer o mesmo tipo de evento. O PF é um amplificador para a nossa voz”, insiste Susana Bettencourt, que se diz “aberta” a uma reformulação do formato, que até envolva maior participação financeira dos criadores, caso necessário. “O PF tem trabalhado ao longo das décadas para a valorização do feito em Portugal e abriu portas, mas agora, o próximo passo, era comunicar a criação portuguesa”, defende.
A internacionalização
Miguel Vieira é da mesma opinião. Apesar de admitir que teria capacidade para fazer um desfile a solo e isso não seria “um problema”, o que o “entristece” é a componente internacional do PF que está em suspenso desde 2022, quando surgiram os primeiros problemas de financiamento. “De um momento para o outro tudo se acabou, e retomar o processo todo, por muito dinheiro que haja, é uma tarefa bastante difícil. Estou no PF por causa da projecção internacional”, defende o criador que apresentava na Semana da Moda de Milão e já “participou em 14 semanas da moda internacionais”, quase sempre com o apoio da plataforma portuguesa. Hoje, “mais de metade” das suas peças são vendidas no estrangeiro.
Também Victor Huarte começava a trilhar os primeiros passos de uma careira internacional com o apoio do PF, mas a experiência foi interrompida pela falta de financiamento. “Não trouxe o retorno de que estava à espera”, desabafa. Por agora, tem-se concentrado no mercado português, para onde faz 80% das vendas da etiqueta em nome próprio.
Perante esta instabilidade, Miguel Vieira defende que o Governo devia encarar a internacionalização da moda de autor portuguesa como uma forma de promoção do país. “Estou a vender o país e Portugal nunca me agradeceu. Não há reconhecimento”, queixa-se, argumentando que a moda “vende Portugal de forma bonita”. E continua: “Só importa o futebol? Sou adepto da selecção, atenção, mas acho inacreditável este cruzar de braços da política portuguesa.”
O PF tem sido financiado por fundos europeus desde a sua fundação em 1995, quando nasceu com objectivo de promover internacionalmente a moda portuguesa — diferenciando-se assim da ModaLisboa. Desde 2016 até 2022, enquanto esteve em vigor o quadro comunitário Portugal 2020, a Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) recebeu cerca de 20 milhões de euros em fundos europeus. Nem todo o dinheiro foi usado no PF, certame que, de acordo com um estudo da Universidade Católica Portuguesa, antes da pandemia gerava dez milhões de euros em cada edição e criava 400 postos de trabalho.
A próxima edição devia acontecer de 1 a 6 de Julho no Porto, mas foi cancelada pela ANJE, que organiza o certame. “Foi uma decisão muito difícil para a ANJE, que decide assim concentrar-se numa edição onde a nova estratégia possa ser apresentada com todas as condições para trazer a todos os criadores e à moda portuguesa a visibilidade, as oportunidades de negócio e a dignidade que ambicionam”, justificam em comunicado.
O PÚBLICO contactou a organização, que se recusou a prestar mais declarações. Garantem apenas que “todos os criadores e meios de comunicação social serão atempadamente informados com os pormenores da próxima edição”, que respeitará o calendário das semanas de moda internacionais.