O absurdo do discurso da Secretária de Estado do Tesouro dos EUA Janet Yellen, para justificar a recente decisão de brutais medidas proteccionistas contra a China, é de grau superlativo: “Excesso de utilização de capacidade produtiva”! Como quem diz: olha lá, não produzas tanto que me sufocas! Absolutamente notável! Como absolutamente ridícula é toda a outra argumentação em torno de subsídios “injustos” da mesma senhora, e agora também da UE. Segundo Renaud Bertrand não só as “taxas de utilização da sua capacidade têm sido praticamente constantes na China nos últimos dez anos, estando agora em cerca de 76%, ou seja no mesmo patamar em que estão as taxas de utilização nos EUA, cerca de 78%”, como “A competitividade das empresas chinesas é esmagadora hoje em dezenas de indústrias – como na energia solar ou nos veículos eléctricos – e simplesmente não há como as empresas americanas ou europeias competirem com as chinesas. Esta é a verdadeira questão: Yellen e os líderes ocidentais têm medo de que, se as coisas continuarem, a China lhes coma o almoço.” (1) (2)
Mas algo interessante, que vale a pena constatar e registar, é que a generalidade dos comentadores e articulistas da dita questão, na sua maioria economistas encartados, têm abordado as decisões dos EUA prevendo um grande desastre e uma grande desordem mas sem tirar todas as ilações devidas. (3) Pelo menos algumas das conclusões políticas que estão ao alcance de todos e que podem ser esclarecedoras de outras polémicas dos dias que correm.
A primeira é a de que Trump não é o único “proteccionista”! Não, não é só Trump mas todos os presidentes dos EUA (e de outras potências poderosas) sempre que precisam de defender os interesses dos… EUA. Aqui há cerca de sete anos, no meio de um grande foguetório no comentário mediático, o “proteccionismo” de Trump (porque pôs em causa tratados comerciais em negociação, como foi o o caso do TTIP – Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento e avançou com medidas sobre o comércio com a China), era a nova ameaça global, depois do terrorismo… Teresa de Sousa, atlantista de gema e fiel da igreja do livre comércio, questionava perplexa no Público (21JAN17): “Um governo de CEO de multinacionais e de financeiros vindos directamente de Wall Street vai decretar o proteccionismo ao serviço da economia mais aberta e mais competitiva do mundo?” Ora, antes de Trump foi proteccionista Obama (4) e todos os anteriores presidentes americanos, sempre que precisaram. E depois do republicano Trump aí temos o democrata Biden, na base da excepcional reflexão da sua Secretária do Tesouro, a decidir o que sabemos! Mas também, contrariamente ao que Luís Marques “descobriu” um dia destes (3), esta não é a “primeira guerra comercial do século XXI, que opõe os Estados Unidos e a China” e também, ao que parece, a UE é outro dos contendores com a China e não apenas os EUA!
A segunda é de que as tais “regras” da “ordem internacional baseada em regras” é para cumprir pelo Ocidente, mas só e apenas quando dá jeito ao Ocidente, EUA e UE! Ao que parece não é só a Rússia que na guerra com a Ucrânia não cumpriu as ditas “regras”. E neste caso o problema tem a gravidade de haver uma organização internacional sufragada pela generalidade dos Estados do mundo, a OMC, com as suas regras e métodos de regulação de conflitos que os EUA, pura e simplesmente fizeram de conta que não conta… que não existe! Nascida a OMC, após um longo processo negocial no pós-guerra (5), e confirmando-se o que já era sabido – a falta de poder absoluto de decisão no seu seio por parte dos EUA e UE, levou-os a decretarem a sua irrelevância, o que vêm fazendo há anos – as recentes decisões dos EUA e da UE na sua guerra comercial visando a China, poderão ser a pedra final no túmulo da OMC.
E a terceira é que a “economia política” da ortodoxia liberal e da dita “ordem liberal internacional”, que defende ou defendia a “globalização” e o “livre comércio”, está de malas aviadas, porque contrariamente ao que nos andaram a vender nas últimas décadas parece que de vez em quando dá maus resultados! Que o digam americanos e europeus, mesmo tendo sido eles a fixar as “regras”. Mas para os cultores da dita “ordem liberal internacional” agora é que vão ser elas. Ficando por dois exemplos. Luís Marques: “O desmantelamento desta ordem com regras será um dos processos mais dolorosos alguma vez executados, segundo muitos especialistas. Aumentará os conflitos económicos entre países e blocos e, por arrastamento, a crispação política e militar. Enfraquecerá as instituições multilaterais, já bastante fragilizadas. As desigualdades vão agravar-se. Os consumidores serão prejudicados. A produtividade será afectada. A ineficiência será beneficiada.” (….). Miguel Monjardino: “Nós, por cá, não imaginamos as consequências do fim desta ordem. Todo (???) o discurso político nacional assume a sua continuação. Uns fazem-no por hábito. Outros por não quererem imaginar alternativas. (…) Até ao dia em que seremos confrontados com as consequências de toda esta mudança.” (3) Mas esta gente devia começar por explicar se a dita “ordem” era tão boa e teve tão bons resultados (a desordem que conhecemos: desigualdades, conflitos, guerras…) por que razão os que a impuseram, EUA e UE, inclusive quando necessário à força, agora remam em sentido contrário?! É o que dá confundir relações económicas entre Estados, incluindo comércio internacional, sob o signo do multilateralismo, interesse mútuo e cooperação com relações económicas sob a imposição e comando unilateral das principais potências imperialistas, moldadas pelos interesses do capital multinacional!
Acredita-se que o desfazer da feira não será pêra doce. Mas tal acontecerá porque os que até hoje têm mandado nunca se conformarão com uma ordem internacional de paz e cooperação, segundo os princípios da Carta das Nações Unidas, e resistirão tanto quanto possível ao fim da exploração e eliminação de relações coloniais e de domínio de uns países sobre os outros. Só a luta dos povos os poderá travar.
Para esconjurar o “proteccionismo” sempre valeu quase tudo. Com o regresso do “proteccionismo” agora é a tragédia que se abaterá sobre o planeta, como se da aplicação da dita “ordem liberal internacional com regras” não resultassem tragédias suficientes! A história terá demonstrado, segundo esses liberais de trazer por casa, que o “livre comércio”, ao contrário do “proteccionismo” (sempre amarrado por essa gente ao “nacionalismo”), sempre correspondeu a períodos de crescimento económico, de melhoria das condições de vida dos povos e nações! O «laissez faire, laissez passer» dos mercantilistas de Colbert e herdeiros, como chave da felicidade humana e paz no mundo!
A complexidade e diversidade da evolução económica no mundo, pelo menos desde a Revolução Industria, não permitem tal simplismo nem visão ahistórica. Bem pelo contrário.
Paul Bairoch, Professor de História Económica da Universidade de Genebra (falecido em 1999), no seu importante ensaio “Mitos e Paradoxos da História Económica” (publicado em Portugal em 2001), põe a nu esse simplismo de abordagem histórica e desmonta os mitos económicos em torno do “livre comércio” versus “proteccionismo”.
Mas não é apenas a história. A realidade económica recente e presente é elucidativa da imensa fraude propalada pelos defensores do “livre comércio”.
O “livre comércio” foi sempre a expressão da vantajosa relação de forças (económica, política, militar) dos países mais poderosos, impondo os seus interesses aos países mais empobrecidos, mais frágeis, menos desenvolvidos. Impondo o livre comércio, quase sempre à força, aos países do chamado Terceiro Mundo (e especialmente aos que foram colónias), com graves consequências na sua industrialização e desenvolvimento económico. O “livre comércio” sempre foi o outro nome do proteccionismo dos países mais poderosos e potências imperialistas.
O uso pelas potências capitalista e imperialistas da defesa do “proteccionismo” ou do “livre comércio” sempre foi de geometria variável. A tónica, em cada conjuntura histórica, era/é a que lhes dava/dá jeito…, isto é, a que nesse momento defende os interesses dos seus capitalistas, das suas classes dominantes, dos seus Estados nacionais. Os interesses da fracção da classe dominante que acedeu ao poder. Em momentos de crise, como a que o capitalismo atravessa nos dias de hoje, sempre oscilaram as posições do capital e dos seus advogados. Porque, como escreveu alguém: “Se a opção protecionista contraria a globalização, ela não contraria a ordem capitalista. Ao colocar em oposição os produtores voltados para o mercado interno e os que privilegiam as transações com o exterior, ela não questiona nem as prerrogativas do capital, nem as relações de força dentro das empresas. No entanto em períodos de crise, ela divide a classe dirigente e suscita duros enfrentamentos de interesses”. (6)
(1) As citações de Renaud Bertrand estão referidas em texto do Blog de Michael Roberts, 10ABR24, O injusto “excesso de capacidade” da China.
(2) Jeffrey Sachs, numa entrevista, toda muito interessante, publicada no Público, domingo, 16JUN24, afirma: “E agora a China pode produzir uma grande parte do que o mundo precisa para descarbonizar. Os EUA dizem que isso é injusto, que a China tem excesso de capacidade. Este é um dos conceitos mais lamentáveis do nosso tempo. A China não tem excesso de capacidade, nós é que temos subinvestimento. Se os EUA e a Europa quiserem recuperar o atraso, tudo bem, mas não digam que a China está a fazer algo de errado. Temos falta de capacidade, é essa a verdade.” Corroborando tais afirmações, temos os dados referidos por Óscar Afonso no Dinheiro Vivo, de 15JUN24: “Os dados permitem ainda destacar que a taxa de investimento da China (o peso do investimento total, a Formação Bruta de Capital, no PIB) se mantém na casa dos 42% até 2029, quase o dobro dos EUA e UE-27 nesse período, ambos em torno de 22%, enquanto Portugal aparece abaixo, na casa dos 20%.”
(3) Sem qualquer critério especial de selecção são os casos de: Luís Marques, “A nova guerra comercial”, Expresso 24MAI24: Miguel Monjardino, “Que está a acontecer à nova ordem liberal internacional?”, Expresso 31MAI24; Carl Bildt (conservador sueco, ex-Primeiro Ministro e ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia) “O perigoso retrocesso para o proteccionismo”, 14JUN24; José Pedro Teixeira Fernandes, “O novo consenso em Washington: o futuro é o proteccionismo”, Público, 28MAI24.
(4) Obama começou a levantar «muros económicos» com o Tratado Transpacífico (TPP), excluindo a China de uma zona de livre comércio, com o confronto militar no mar da China meridional (uma rota comercial estratégica para a China) e com restrições crescentes no interior dos EUA a investimentos chineses. O “protecionismo” de Trump, não caiu em terra virgem. Os EUA sempre foram muito liberais na imposição a outros das suas mercadorias e capitais, mas nunca deixaram de proteger feroz e devidamente as suas fronteiras económicas. O “Buy American Act” (cláusula “comprar americano nos mercados públicos), o “Small Business Act” (reserva para as PME americanas das encomendas públicas), as multas e retaliações mesmo para multinacionais dos seus aliados da Europa, não são figuras de retórica…
(5) O processo iniciou-se no pós-Guerra, com as negociações do GATT (1943), à margem das estruturas multilaterais das Nações Unidas e assim marginalizando o Bloco socialista, a que se seguiram as “Rondas” do Uruguai e de Doha, até à constituição da OMC em 1993 (em vigor desde Janeiro de 1995), que deveria ser o motor da liberalização do comércio. A adesão da China e outros países dos BRICS acabou por travar “o quero, posso e mando” da Tríade.
(6) Serge Halimi, Monde Diplomatique, Março 2009.