Nos últimos meses, regressou ao espaço público nacional o debate sobre literacia. Tanto num sentido mais estrito, o da literacia financeira, como numa acepção mais ampla, a da literacia como um todo, dado que é esta a força-motriz de um país com cidadãos plenos, isto é, mais autónomos, mais produtivos, mais exigentes e mais participativos, contribuindo para que atinjam os objectivos estabelecidos pela ONU no que respeita à educação e ao emprego no âmbito do desenvolvimento sustentável.
Todavia, há uma dimensão específica de literacia que tem sido tratada como o lado B, o ângulo morto desta problemática e que é nevrálgica para que Portugal não marque passo, não perca mais tempo, e possa crescer sustentadamente e desenvolver-se: a literacia digital.
A literacia digital de um país é um indicador-chave para determinar a sua capacidade para aproveitar as oportunidades que o investimento em redes e serviços de comunicações electrónicas proporcionam, pelo que é essencial ter um diagnóstico claro e um plano de acção para eventuais medidas de mitigação.
Se a cobertura no 5G e no FTTH é um pilar fundamental de uma estratégia em que assenta o sucesso da afirmação nacional, quer no quadro da União Europeia (UE), quer do ponto de vista das relações com outros blocos políticos e económicos, relativamente à liderança na adopção das novas tecnologias, como a Inteligência Artificial, a Internet of Things, o Cloud Computing ou a computação avançada, resulta evidente que a ausência de um plano de combate à iliteracia digital é uma fragilidade fatal para essa mesma estratégia.
Não tenhamos dúvidas de que há uma revolução digital em curso e a rua em que está a acontecer é a infra-estrutura de comunicações electrónicas. Não por acaso Enrico Letta, ex-primeiro-ministro de Itália que recentemente apresentou um relatório sobre o mercado único europeu, veio advogar o reforço do mercado único e o alargamento das quatro liberdades fundacionais do projecto comunitário (livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais) a um novo domínio. No documento intitulado “Much more than a market”, destaca a introdução de uma “Quinta Liberdade” – já referida no Tratado sobre o Funcionamento da UE – para melhorar a investigação, a inovação e a educação no mercado único, visando o aproveitamento de todo o potencial da UE no âmbito de uma economia global baseada na inovação e no desenvolvimento.
Para isso, não basta Portugal ter das melhores redes e serviços de comunicações electrónicas da UE, liderando em todos os rankings que analisam as infra-estruturas de comunicações electrónicas. Não basta o investimento massivo realizado pelos operadores nos últimos anos (8,5 mil milhões de euros entre 2016 e 2022), que se traduziu na cobertura, resiliência e qualidade que as redes de comunicações apresentam e que foram postas à prova, com sucesso, durante a pandemia, com o teletrabalho e a garantia do acesso digital à educação. Não basta olharmos com satisfação e optimismo para os dados mais recentes da ANACOM que dão conta de que Portugal, a par de uma cobertura de redes de nova geração de 94,4%dos lares, já tem todos os concelhos cobertos com 5G.
É preciso mais. É preciso, desde logo, e como o próprio Letta refere no seu relatório, garantir as condições de sustentabilidade financeira para que os operadores continuem a poder investir na modernização e desenvolvimento das capacidades das suas redes, mas é também essencial um compromisso claro com a literacia digital. É preciso um desígnio nacional envolvendo todos os stakeholders, dos governos às comunidades educativas, dos legisladores às empresas dos mais diversos sectores, passando pelos diferentes reguladores e, claro, pelos consumidores.
O país, no seu conjunto, não pode conformar-se em ser o 12.º à escala comunitária no que respeita à literacia digital, com apenas 55,9% da população com níveis básicos ou acima de básicos de utilização de tecnologia. Nem pode resignar-se a ter 12,4% da população que nunca utilizou a internet (6,5 pontos percentuais acima da média da UE), segundo os dados do inquérito “Information and Communication Technologies in Households and by Individuals”, da Comissão Europeia, relativo ao ano passado.
Não pode aceitar tais valores, ainda para mais ciente de que estes fenómenos incidem de forma mais vincada sobre franjas tendencialmente mais excluídas, sobretudo reformados e outras pessoas inactivas. Em Portugal, de acordo com o relatório anual “O consumidor de comunicações electrónicas”, publicado pela ANACOM, 42% dos cidadãos entre os 65 e os 74 anos nunca acedeu à internet (a média da UE é de 22%). Entre os 55 e os 64 anos o cenário também não era animador: 20% em Portugal face aos 8% na UE. E não há como dissociar a exclusão do universo digital da falta de instrução escolar: no ano passado, 27% das pessoas cuja formação não ia além do 3.º ciclo do ensino básico nunca tinham estado online (na Europa, a taxa é de 14%).
Se atendermos às razões invocadas para a não utilização de internet em casa, as estatísticas são inequívocas: 45,2% das pessoas dizem que não a sabem utilizar, ao passo que 16,1% a consideram “pouco útil ou interessante”.
Voltando ao relatório “Information and Communication Technologies Usage in Households and by Individuals” de 2023, os portugueses aproximaram-se da média europeia em dimensões da literacia como a análise de dados e informação ou a criação de conteúdos, mas continuam abaixo no que concerne à resolução de problemas online (44% vs. 57% na UE).
Além disso, a literacia digital é também causa e consequência de coesão territorial. Tal como mostra o relatório “Competências Digitais da População e das Empresas”, divulgado pela ANACOM, nas zonas urbanas a percentagem de pessoas com um nível acima do básico, 64%, está bem acima dos 41% registados nas zonas rurais.
E se a realidade dos indivíduos e das famílias exige medidas, a das empresas também merece atenção, mesmo não fugindo em demasia aos padrões europeus – 64% das nossas empresas possuem um índice de intensidade digital baixo (35%) ou muito baixo (29%). Mais: 13% das médias empresas têm um índice de intensidade digital muito baixo, percentagem que sobe para 32% quando são as pequenas empresas sob observação. Este vector de análise é tanto mais preocupante se considerarmos que o tecido empresarial português é composto maioritariamente por PME.
Quando se tornou público o seu relatório, Letta afirmou que não pretendeu “escrever um livro de sonhos”, mas “um conjunto de propostas razoáveis e exequíveis” para que o mercado único recupere dinamismo e a Europa se reposicione na cena mundial. De facto, a revolução digital é uma tremenda oportunidade para países como o nosso, assim como para o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos. A conectividade e a digitalização podem significar um aumento de um bilião de euros no PIB europeu – o equivalente ao PIB dos Países Baixos. Podem, portanto, representar um sonho para todos. Apostemos na literacia, permitamo-nos sonhar. Ainda vamos a tempo.