Com 30 anos vividos nunca deixei os filmes de animação. Sou filho da Disney e dos anos 90. A minha infância é contemporânea de “Hércules”, “Tarzan” e “Mulan” mas não escapa aos clássicos de “A Bela Adormecida” e “A Pequena Sereia”. Estas animações foram o meu primeiro embate com a arte e entretenimento e, talvez por isso, nunca deixei de acompanhar a sua evolução narrativa.
Na última década, as películas que se apresentam têm novos argumentos. Já não se contam histórias do ‘nós contra eles’, agora, somos apenas ‘nós’ – unidos. É assim que se constroem blockbusters actuais como “Frozen”, onde é o amor fraterno, entre irmãs, que salva um coração gelado (em vez do romance); “Coco”, uma viagem pela ancestralidade mexicana para nos ensinar mais sobre o perdão e a união das famílias; e “Inside Out” que nos mostra como as emoções devem viver em equilíbrio dentro de nós (através dos seus quatro personagens – alegria, tristeza, medo e repulsa).
Os filmes que populam o imaginário mainstream permitem-nos constatar a transformação dos valores da sociedade ocidental, com uma pretensão de liberdade, emancipação, inclusão e laicidade.
Porque é que as princesas, as suas paixões e casamentos já não interessam? Porque é que se premeia a pluralidade e as cores da multiculturalidade? Na minha infância, há 20 anos, nada disto era uma realidade. As minhas histórias favoritas eram clichês de princesas tokenizadas como “Branca de Neve e os Sete Anões”.
Recentemente li “O Maravilhoso Feiticeiro de Oz”, de L. Frank Baum, que escreve na introdução:
“Está na hora de novos ‘contos maravilhosos’, nos quais são eliminados os estereótipos de génios, anões e fadas, junto dos incidentes horrorosos e sangrentos traçados pelos autores para incutir uma temerosa moral. Com esta ideia em mente, o Feiticeiro de Oz foi escrito, exclusivamente, para agradar às crianças de hoje. Pretende-se moderno, com a alegria e o encanto preservados e as dores do coração e os pesadelos deixados de fora”.
Fui surpreendido pelo facto de esta declaração ter sido escrita em 1900, há 124 anos, mas só 100 anos depois começamos a ter os primeiros retratos mainstream não xenófobos, tokenizados ou estereotipados, que promovem, ao invés, a diversidade e a inclusão. O mundo de Oz era um presságio para as narrativas de hoje.
No clássico de Baum, Dorothy vai para o mundo de Oz depois de ser presa num ciclone. Oz é um lugar de tolerância, vulnerabilidade e diversidade de emoções, onde é celebrada a liberdade e o fim da escravatura. Lá, Dorothy faz amigos mas quer voltar ao Kansas, para junto da família. Voltar implica colocar este seu desejo ao Feiticeiro de Oz, que vive para lá do arco-íris, percorrendo a estrada dos tijolos amarelos. Gosto da metáfora da estrada, porque nos mostra caminho a percorrer, e também do arco-íris, que nos transporta para um território de ilusões e sonhos.
Escrever este texto é viajar por estas referências: tanto a estrada, que é um caminho de evoluções sociais, como o arco-íris, lugar utópico e inatingível mas que vai moldando as nossas crenças e realidade.
Com estas premissas, voltemos ao universo Disney. Em 2014, “Maléfica” estreou para marcar um ponto de viragem. O filme humaniza a personagem que vilificou em 1959, quando lançou “A Bela Adormecida”, uma animação do conto de fadas com raízes nas eras medieval e do renascimento. “Maléfica” marca uma nova era: a da ressignificação.
Tanto “Maléfica” como “Cruella” (2021) são mega produções criadas para subverter as histórias destas vilãs, tornando-as humanas, vulneráveis e permeáveis a emoções quotidianas. São histórias de compaixão, em que Maléfica se revolta porque lhe cortam as asas e Cruella porque a mãe é assassinada. Com a ressignificação, procura-se tirar a conotação negativa de personagens centrais do imaginário clássico, aliando-as aos princípios agora transmitidos em todas as películas: compaixão, fraternidade e união.
Trata-se de um movimento necessário. “A Bela Adormecida” estreou em 1959 e “101 Dálmatas” em 1961 mas a Disney continuou a veicular estereótipos sociais em histórias para crianças nas décadas seguintes.
“O Corcunda de Notre Dame” é de 1996 e anima um clássico escrito por Victor Hugo, em 1831, sendo talvez o exemplo mais chocante que vi de discriminação e xenófobia num filme. Quasimodo, a personagem principal, é uma pessoa com deficiência que nos primeiros 5 minutos de filme é chamado por diversas vezes de “monstro” e “criatura”, sendo escondido numa torre, longe de vista e da interacção social, tal como acontece com tantas pessoas com deficiência. Perpetua ainda uma violenta fobia sobre a comunidade cigana na forma como aborda a personagem de Esmeralda.
É irónico pensar que entre o lançamento de “Branca de Neve e os Sete Anões”, em 1937, e “O Corcunda de Notre Dame”, em 1996, passaram 59 anos de narrativas estereotipadas que foram ganhando espaço no subconsciente das gerações infanto-juvenis. Durante este tempo, as palavras de L. Frank Baum que pediam “novos ‘contos maravilhosos’, nos quais são eliminados os estereótipos de génios, anões e fadas”, escritas em 1900, parecem ter caído no vazio.
A Disney começa, no meu entender, a retratar-se lentamente com o trabalho da Pixar, o estúdio de animação computadorizada. Lança “Toy Story” em 1995 e o caminho de desconstrução dos preconceitos vai sendo feito desde então ao longo de 27 filmes lançados (a esmagadora maioria com enorme sucesso de bilheteira e junto da crítica).
Com o passar do tempo, as narrativas dos clássicos ficaram obsoletas, incomodando os novos valores ocidentais. É por isso que começa o movimento de ressignificação que, além de reescrever histórias de vilões, recria os clássicos em live-action.
“A Pequena Sereia” (2023) é o mais recente remake. A animação é de 1989 e o conto de fadas, dinamarquês, remonta a 1837. Na última versão, Ariel é negra e no elenco vêem-se vários tons de pele, origens e etnias.
Não deixa de ser também um exemplo dos perigos no politicamente correcto. Os criadores da animação original fizeram notar que Úrsula, a vilã, foi inspirada em Divine – drag queen incontornável da cultura LGBTQ+. Se privilegiamos a diversidade porque é que no remake Úrsula não foi interpretada por uma artista drag? Os números musicais da vilã, nesta versão, perderam o encanto. Talvez se fosse uma actriz drag tivesse sido possível manter o espírito original, honrando a diversão dessa cultura.
No entanto, existem, nesta ideia, dois problemas sobre os quais é importante reflectir: o acolhimento que poderia gerar-se na comunidade LGBTQ+ sobre a inspiração na sua cultura para vilificar uma personagem e, consequentemente, categorizá-la de má índole; o desafio que seria feito à família tradicional com uma figura do universo LGBTQ+ num blockbuster desta dimensão quando a empresa multinacional ainda está a dar os primeiros passos na normalização destas histórias.
Com o exemplo de Úrsula podemos voltar à metáfora de Oz com a estrada dos tijolos amarelos e o lugar que se encontra no arco-íris. A diversidade racial nesta versão d’ “A Pequena Sereia” é sintomática do caminho feito pela pluralidade nos ecrãs mas incluir alguns grupos marginalizados, como a cultura drag, continua a ser um movimento demasiado arriscado, com consequências económicas e mediáticas, que a produtora não quer correr.
Os clássicos são fruto de uma herança colonial, ancorados em contos europeus, assim como toda a cultura mainstream ocidental. A descolonização é um movimento recente e democrático mas que não se emancipou dos sistemas económicos que a suportam.
As minorias têm vindo a unir-se e criou-se uma economia natural. Somos reféns dela, vive aliada ao politicamente correcto, e, muitas vezes, não sei se devíamos ter criado um sistema económico nestes contornos – mas criámos e, agora, vivemos nele. Faz parte da nossa sobrevivência.
E se deixar de ser trendy fazer de Cruella um fruto do movimento punk? Mesmo sendo uma subcultura, as forças económicas acolhem este posicionamento dos argumentistas. Por outro lado, porque é que Úrsula, em “A Pequena Sereia”, não é interpretada por uma actriz drag? Talvez porque esse casting era demasiado arriscado para o sistema sócio-económico. Provavelmente, como já foi referido, porque esse casting era demasiado arriscado para o sistema sócio-económico.
A cultura mainstream é um espaço gentrificado, volátil a diversas mutações. Hoje promove gradualmente a inclusão e diversidade, mas esse movimento é recente porque os valores políticos e económicos sempre estimularam uma experiência uniforme (veja-se como os regimes totalitários do século XX instrumentalizaram a cultura para criar uma ilusão de união nas suas sociedades).
O ser humano é uma construção permanente, uma evolução que se executa a cada dia. O problema reside na rejeição dessa construção, que é diversa, múltipla e nada estereotipada. É por isso que, em 2024, “O Maravilhoso Feiticeiro de Oz” continua tão actual, assente em pilares que podem continuar a moldar a forma como acedemos à cultura e criamos arte ou entretenimento para as novas gerações.
Oz, mais do que um lugar de tolerância, é um lugar de diversidade, onde cada interveniente abraça a sua diferença. Isso é representativo da sociedade em que vivemos – extrapolado, Oz, podia ser o mundo onde existem pessoas islâmicas, hindus, LGBTQ+, negras e ciganas. A metáfora da utopia lembra-nos que, apesar de diferentes, e sabendo-se excluídos, estes grupos não se toleram necessariamente uns aos outros. Mas há um caminho pedagógico para a aceitação de todos nós.
124 anos depois, a Disney parece ter encontrado o mundo pedagógico de Oz mas, nós, enquanto público e consumidores, devemos manter-nos vigilantes da cultura mainstream. As minorias sempre conheceram o lugar de Oz na diversidade inerente. Devemos ter consciência que o arco-íris, como lugar de convergência e união, é um jogo de ilusões, uma utopia, mas também é uma oportunidade: todos podemos resgatar um pedaço dessa utopia para a nossa realidade.