Morreu no passado dia 10 de Março, vítima de doença prolongada, a Revolução do 25 de Abril de 1974. Faria este mês 50 anos de vida.
A Revolução estava doente, é verdade. Já tinha sofrido alguns acidentes vasculares cerebrais, outros tantos enfartes do miocárdio, e já há algum tempo que lhe tinha sido diagnosticado Alzheimer. Mas de acordo com a autópsia, a causa da morte da Revolução foi um cancro, o cancro letal da negligência e do abandono. Há quem aponte o dedo aos seus filhos, e os acuse de parricídio. Especialmente os filhos mais novos, que a renegavam e até desprezavam.
Nas eleições do dia 10 de Março passaram a caber num táxi os seus guardiões parlamentares mais antigos, mais obstinados e leais: os comunistas. O PCP é o único partido revolucionário. Incorporou orgânica e estatutariamente o leninismo, estabeleceu-o até hoje e, apesar de alguma deriva social-democrata, mantém um programa político que não descarta um projeto societal diferenciado e alternativo e, nos seus pressupostos, próximo do imaginário revolucionário.
No passado dia 10 de Março, no distrito que viu a heroína revolucionária Catarina Eufémia ser assassinada pela guarda do salazarismo, os velhos comunistas da CDU continuaram a bradar que o Chega é um partido de fachos e votaram no seu partido de sempre, mas ficaram em terceiro lugar e não elegeram nenhum deputado, enquanto os seus netos elegeram um deputado do partido do tipo que diz as verdades, que quer prender os corruptos, que manda os ciganos trabalhar, e que é contra tantos indianos e paquistaneses por aqui… Que patético e triste fim da Revolução.
No dia de 10 Março não morreu a democracia, mas morreu a ideia e o projeto de revolução que a democracia nascida com a Revolução veio a disseminar e a exaltar. A democracia portuguesa, que foi sempre burguesa, liberal, representativa, e nunca popular no que o termo significava quanto à configuração do regime político, teve a sua fase de esplendor revolucionário nos primeiros anos: reforma agrária, nacionalização da banca e dos seguros e criação de um verdadeiro Estado Social na área da saúde, da educação, da segurança social, dos direitos laborais…
A coletivização dos principais meios de produção, a construção de uma sociedade sem classes, sem exploradores nem explorados, a visão de um homem novo, pertenceu a um ideário revolucionário generalizado, mais romântico e utópico do que efetivado em propostas concretas e demonstrado na sua exequibilidade. Mas o 25 de Abril trouxe também essa promessa revolucionária de uma sociedade socialista. O socialismo marxista é intrínseco ao 25 de Abril. E o PCP foi, e é, o mais respeitável, coerente e institucional representante dessa promessa revolucionária. Acompanhado nos primeiros anos pela extrema-esquerda pulverizada em múltiplos partidos de diferentes inspirações ideológicas, e mais recentemente pelo pós-revolucionário Bloco de Esquerda, mais sensível aos valores pós-materialistas e a um reformismo fraturante da democracia do que exatamente empenhado numa recauchutada ideia de revolução socialista. Já o Partido Socialista, depois de o PPD/PSD o ter feito mais cedo, despediu-se há muito da agenda revolucionária e passou a querer apenas humanizar o capitalismo… E o PCP ficou estoicamente isolado a jurar a bandeira da Revolução.
A ideia e valor da Revolução foram morrendo em Portugal ao longo das últimas décadas, especialmente por culpa de quem viveu a Revolução do 25 de Abril, nela participou ou com ela cresceu. Os revolucionários oportunistas viraram costas à Revolução quando passaram a ser beneficiários dos despojos do sistema ou dele se aproveitaram a ponto de temerem o seu desmantelamento. Os revolucionários convictos foram amolecendo, destreinando a memória, desvalorizado os perigos que se assomavam, ou reconhecendo-se incapazes para promover e revitalizar os valores da democracia e da Revolução junto das novas gerações. E os revolucionários profissionais não conseguiram competir com a travestização lúdica da discursividade e comunicação políticas, transformadas em arranjos medíocres de política pimba, em soundbites milagreiros e agora em dancinhas do Tik Tok. E tudo isto teve a cumplicidade amorfa da escola, que alinhou neste continuado abandono do legado democrático e revolucionário, que cooperou nesta metastização da amnésia. O 25 de Abril está nos currículos e nos programas como um apêndice folclórico e dispensável.
Mas se morreu a simbólica da Revolução, está em definhamento comatoso a exigência democrática e, já agora, civilizacional, da igualdade, da fraternidade, da generosidade, da justiça social, da tolerância, da multiculturalidade, da inclusão, da equidade de género, da livre expressão da identidade estética, sexual, etc. Algumas destas prerrogativas democráticas e, pelo seu alcance, ou pela ultrapassagem paradigmática que supõem, justificadamente revolucionárias estão a ser postas em causa, senão mesmo contrariadas, por uma direita populista, demagógica, moralmente conservadora e retrógrada, angariadora de novos e impressionáveis intérpretes, de velhas feições ideológicas, branqueadora dos fascismos, e que recrudesce à boleia de medos fabricados (o imigrante ímpio e usurpador de empregos, o esquerdista transgressivo) e mitos de redenção securitária e higienista. Vejam-se os slogans do Chega: limpar o país da corrupção, restaurar a ordem e a segurança, valorizar a família tradicional e os seus valores. Há uma narrativa da purificação e da seleção morais (os homens de bem, os escolhidos por Deus…), que é antiguinha e farsante, mas nem por isso menos assustadora e premonitória.
Morta a Revolução, que do seu luto ensinador se fortaleça a vigilância democrática, para que a democracia sobreviva e reforce as suas defesas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico