Era um dia de trabalho como os outros. Reunidos numa sala, editores e diretores criativos editavam um filme que a agência de publicidade estava prestes a lançar. O realizador também estava presente e, a dada altura, pediu a Nádia Pinto o número de telefone, em voz alta. Julgando que seria para tratar de questões relacionadas com o trabalho, Nádia cedeu o contacto. Nessa mesma noite, o realizador enviou-lhe várias mensagens, dizendo que era “linda” e convidando-a para jantar. Não respondeu a nenhuma.
As mensagens continuaram nos dias seguintes, incluindo durante as reuniões de trabalho. “Esse vestido fica-te incrível.” Quando a cumprimentava, repetia o mesmo elogio — “és incrível” —, ou tentava outras abordagens. “Dava-me aqueles beijos meio melosos na cara e cheirava-me o cabelo”, conta a diretora de arte no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.
Matilde Fieschi
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Quando a agência avançou para um segundo projeto com o mesmo realizador, Nádia pediu a uma colega para a substituir nas filmagens, acreditando que se tinha tratado de uma situação isolada, afetando-a apenas a si, e que não se iria repetir. Mas no dia a seguir a uma das filmagens, a colega estava “esquisita”. “Perguntei-lhe o que se passava e ela disse-me que o realizador, ao aperceber-se da tatuagem que ela tem nas costas, abriu-lhe o decote da camisola e espreitou, para ver se descobria mais tatuagens.” Denunciaram o caso aos diretores criativos da agência, que se mostraram “horrorizados”, mas “não fizeram mais nada”. Passaram vários anos desde que isto aconteceu. O realizador em causa já não está na mesma agência, mas continua a trabalhar.
Esta não foi a primeira vez que Nádia foi vítima de abusos em contexto de trabalho. Ao longo da carreira na área publicidade experienciou várias situações de assédio. Dá o exemplo de outro episódio, ocorrido anos mais tarde, noutra agência de publicidade. “De manhã, passava imenso a pensar no que vestir, porque sabia que a minha roupa iria ser comentada – ou porque me dava um ‘ar incrível’, ou porque ‘o rabo ficava assim’, ou porque ‘as pernas ficavam assado’, ou porque o decote era ‘inacreditável’. Lembro-me perfeitamente de passar os domingos a vomitar, só por saber que no dia seguinte iria trabalhar.”
Matilde Fieschi
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Assédio tem “impacto danoso” sobre as próprias organizações
Liliana Dias, especialista em Psicologia da Saúde Ocupacional e membro do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho da Ordem dos Psicólogos, sublinha que o assédio em contexto de trabalho não se refere apenas a ações concretas. “Podem ser palavras e atitudes em que há uma intenção clara de atingir a dignidade da pessoa, de a humilhar, intimidar, diminuir e manipular, colocando-a numa situação de insegurança.” E, para terem um impacto sobre as vítimas, estes episódios não têm de ser, necessariamente, “frequentes”. “Basta acontecer uma vez.”
Estas situações podem ter um impacto “danoso” sobre as vítimas, tanto do ponto de vista da saúde psicológica, como física, mas também sobre as suas famílias e sobre os colegas que testemunham a situação ou tiveram conhecimento da mesma. Também podem afetar os resultados da própria organização. “Em ambientes considerados inseguros do ponto de vista psicológico, não há capacidade para trabalhar, ser criativo, colaborar e partilhar informação essencial para o trabalho.”
Segundo a especialista, ainda existe nas organizações um grande desconhecimento sobre que tipo de situações podem configurar assédio sexual ou moral. “Não tem de ser algo óbvio, evidente, de que toda a gente se apercebe imediatamente.”
Observações sobre as características da pessoa ou sobre o seu contexto familiar, social ou económico constituem “microagressões”. Como dizer a alguém, por exemplo, “que é natural que não compreenda determinadas dinâmicas porque nasceu nas Beiras”. Ou colocar em causa as competências de um trabalhador, argumentando com a sua alegada falta de experiência, com o facto de ser “demasiado jovem” ou de ser “mulher e, por isso, não perceber certas coisas”.
“No fundo, quem faz estes comentários está a tentar manipular a perceção que a pessoa tem de si própria e a diminuir as suas competências, e isso pode ser considerado assédio moral.”
Nas próprias reuniões de “feedback” entre trabalhadores e chefias pode haver situações de assédio, com “comentários agressivos que impedem que a pessoa se desenvolva, aumente a sua autoconfiança, esteja motivada e invista no trabalho”. “Por mais formação que se dê nas organizações privadas e públicas, este tipo de situações continua a acontecer.”
Liliana Dias, especialista em Psicologia da Saúde Ocupacional e membro do Conselho de Especialidade de Psicologia do Trabalho da Ordem dos Psicólogos
Matilde Fieschi
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A dificuldade de denunciar
Nádia Pinto não chegou a denunciar formalmente nenhuma das situações de assédio que experienciou. “Somos um país pequeno e, na área da publicidade, todas as pessoas se conhecem. Tinha poucos anos de profissão quando estes episódios aconteceram e tive medo de dar esse passo.” Além disso, “ninguém falava abertamente sobre o tema do assédio. “Eu sabia que estava sozinha.”
Nádia e outras duas colegas de profissão criaram uma plataforma — The F Side — que começou recentemente a recolher denúncias de assédio feitas por mulheres que trabalham em agências de publicidade. Além de publicarem estes casos nas redes sociais da plataforma, como forma de dar visibilidade ao problema, disponibilizam apoio jurídico gratuito e apoio psicológico de baixo custo às vítimas.
Liliana Dias aponta as principais dificuldades associadas ao ato de denunciar. “Ainda não há confiança de que os agressores vão ser, efetivamente, responsabilizados. As vítimas não só não acreditam que possa haver consequências, como julgam que elas é que serão prejudicadas, porque, no seio da empresa, passam a ser encaradas como a pessoa que ‘só arranja problemas’.” Também acabam por se culpabilizar pelas situações, julgando que “são fracas a nível profissional” ou que o problema foi a roupa que vestiram naquele dia para ir trabalhar. A psicóloga lembra que as denúncias também podem ser feitas por testemunhas.
Há quem, ainda assim, denuncie internamente o assédio, “mas, na maior das vezes, o que as organizações fazem é tentar camuflar as situações, ignorar, ou transferir a pessoa que assediou para outra equipa.” Liliana Dias nota que, quer do ponto de vista das organizações públicas, quer das privadas, “há uma preocupação crescente em criar mecanismos e canais de denúncia”, mas isso não significa que estejam efetivamente implementados ou que os trabalhadores se sintam suficientemente “seguros e confiantes” para os usar.
Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.
Nuno Fox