A Amnistia Internacional revelou esta quarta-feira uma realidade dantesca nas prisões no nordeste da Síria, acusando os Estados Unidos e o Reino Unido de apoiarem ou, pelo menos, serem coniventes com um sistema prisional repleto de graves violações de direitos humanos. São frequentes os crimes de guerra, incluindo tortura, agressões, choques, violência de género, separação de crianças das mães, desaparecimentos e execuções sumárias.
No relatório divulgado esta quarta-feira, a organização de direitos humanos explicou que continuam detidas mais de 56 mil pessoas pelas autoridades autónomas no nordeste da Síria, na sequência da derrota territorial do Estado Islâmico (EI) há mais de cinco anos. Dessas, 11.500 são homens, 14.500 são mulheres e a maioria, 30 mil, são crianças. Encontram-se espalhadas por 27 estabelecimentos prisionais e dois campos de detenção (de al-Hawl e de Roj).
A secretária-geral da Amnistia Internacional, Agrès Callamard, afirmou no relatório que “crianças, mulheres e homens detidos nestes campos e prisões sofrem crueldade e violência chocantes”, acusando os Estados Unidos de desempenhar “um papel central na criação e manutenção deste sistema, no qual centenas tiveram mortes preveníveis, e deve ter um papel para o mudar”.
As prisões acolhem várias vítimas do Estado Islâmico, incluindo muitas mulheres e crianças que foram forçadas a casar com membros do grupo terrorista e que, por isso, passaram a ser consideradas cúmplices. Muitos rapazes e jovens adolescentes foram também recrutados à força para lutar pelo EI, encontrando-se detidos pelas autoridades sírias.
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Foram também identificados 20 cidadãos britânicos, incluindo pessoas como Shamima Begum, que tinha 15 anos quando saiu de Londres para se juntar ao EI e casar com um militante holandês.
“Este sistema de detenção viola os direitos das pessoas com alegada filiação ao EI e também falha em trazer justiça e responsabilização às vítimas e sobreviventes do EI. (…) As autoridades autónomas cometeram crimes de guerra, de tortura e tratamento cruel, e provavelmente cometeram crimes de homicídio”, acrescentou o relatório.
Entre os detidos estão também vítimas do genocídio contra o povo Yazidi, um grupo étnico oriundo da zona do Curdistão que tem sido atormentado tanto pelos jihadistas da região como pelo governo turco de Erdogan. Estima-se que tenham sido mortos 5 mil yazidis durante a ascensão do EI, a partir de 2014, e que tenham fugido da região cerca de 500 mil pessoas.
“Se a ameaça do EI continua a ser uma realidade a nível global, as violações em curso no nordeste da Síria apenas exacerbam as queixas e fazem com que uma geração de crianças tenha conhecido apenas injustiça sistémica. As autoridades autónomas, membros da coligação liderada pelos EUA e a Organização das Nações Unidas devem agir para reparar estas violações e por fim a ciclos de abuso e violência”, apelou Agrès Callamard.
Violência de género e condições de saúde precárias são a norma
No nordeste da Síria, a Administração Autónoma do Nordeste da Síria – ou Rojava – tornou-se praticamente independente após a guerra com o EI. As forças democráticas da Síria (SDF, na sigla em inglês) controlam a zona, com o apoio de uma coligação internacional liderada pelos EUA.
O relatório denuncia que, até dezembro de 2023, dos mais de 56 mil detidos registados, mais de 46.600 estavam presos nos campos de al-Hol e Roj – e desses 94% são mulheres e crianças. “Ninguém nestes campos foi acusado ou teve oportunidade de contestar a sua detenção perante uma autoridade judicial independente”, condena a organização não-governamental.
A Amnistia Internacional entrevistou também oito homens, detidos entre 2019 e 2023 num centro de detenção na periferia de al-Shaddadi. Um deles, identificado apenas como Yusuf (nome fictício), apresentou relatos extremamente violentos, envolvendo agressões por parte dos guardas das SDF, com choques elétricos e bastões de plástico, e violações pelos próprios seguranças prisionais a homens e mulheres.
“Todos os oito ex-detidos em Sini contaram que as SDF os privaram de água e comida. Todos enfrentaram condições desumanas nas suas celas, incluindo superlotação, falta de ventilação e temperaturas extremas. Disseram que a combinação de abuso físico, condições fracas e falta de cuidados médicos levou a surtos de doenças e a outros problemas de saúde, e à morte de centenas de pessoas”, apontou o relatório. As próprias SDF revelaram à Amnistia Internacional que os casos de tuberculose têm sido muito frequentemente, com quase duas pessoas a morrerem por semana da doença.
No total, foram entrevistadas 126 pessoas que estão ou estiveram presas nos locais geridos pelas forças autónomas.
No campo de al-Hawl, a organização fala de elevados níveis de violência de género, desde ataques por parte de antigos membros do Estado Islâmico contra mulheres por “infrações morais”, ou por membros das SDF que separaram à força as crianças das respetivas mães.
“Os detidos recordaram episódios em que familiares e colegas de cela morreram à sua frente. Um detido disse que 17 pessoas na sua cela morreram quando as autoridades desligaram a ventilação um dia em 2020. De acordo com três detidos, os corpos dos que morreram no campo de Sini foram depositados numa vala comum”, acrescenta ainda o relatório.
Outro homem, identificado apenas como Abbas, também comentou que soldados norte-americanos visitaram a prisão onde estava detido em dezembro de 2021 e que os militares “viram sangue nas paredes” e “que as pessoas estavam feridas por causa da tortura”.
SDF negam queixas, EUA pedem respeito e Londres afasta responsabilidades
As autoridades autónomas negam a existência de quaisquer violações de direitos humanos nos seus centros de detenção. À Amnistia Internacional, garantiram que não foram recebidas quaisquer queixas e “se isso aconteceu, foram por ações individuais”, recusando a ideia de um problema sistémico. Também criticaram a comunidade internacional por deixar a região “sozinha para lidar com as consequências” da guerra contra o EI.
Os Estados Unidos, por outro lado, admitiram que existem “desafios humanitários e de segurança críticos” no nordeste da Síria, e pediram que todos os atores na região “respeitem os direitos humanos”, garantindo ainda que está a trabalhar com as SDF para a “repatriação e regresso de pessoas deslocadas e detidos para os seus países de origem”.
A Amnistia Internacional alegou que o Reino Unido financiou em 15 milhões de libras (cerca de 17,6 milhões de euros) a expansão de um centro de detenção chamado Panorama, onde foram detetados os muitos casos de tuberculose entre homens e rapazes. Sacha Deshmukh, diretora da organização no Reino Unido, disse que o país é “responsável por todos os cidadãos, incluindo Shamima Begum, e não pode atirá-los para o lado sempre que convém”.
O governo britânico respondeu que tem “processos robustos que asseguram que projetos financiados pelo Reino Unido vão de encontro às nossas obrigações de direitos humanos e valores”. Mas o executivo, liderado por Rishi Sunak, apontou antes o dedo às autoridades locais. “Ultimamente, a responsabilidade pelos campos e centros de detenção e pelo bem-estar, detenção, transferência e acusação de detidos é um assunto das autoridades que detêm esses indivíduos”, vincou.