Tinha tudo para correr mal. A participação da equipa portuguesa de hipismo nos Jogos Olímpicos de Paris de 1924 foi uma autêntica prova de obstáculos, dentro e fora do “stadium”. Os vários percalços que atletas e cavalos encontraram pelo caminho foram descritos no relatório da participação nacional que Manoel Latino, o tenente-coronel que liderava a equipa, escreveu após a competição.
Nesse documento, que se encontra nos arquivos do Comité Olímpico de Portugal, percebe-se que houve o risco de a equipa de quatro cavaleiros, – Aníbal Borges de Almeida, Hélder de Sousa Martins, José Mouzinho de Albuquerque e D. Luís Cardoso de Menezes (Margaride) – não chegar a fazer as malas para Paris.
Todos eram oficiais de cavalaria e treinavam em Mafra, no quartel onde cumpriam com os seus deveres militares. Nessa época, “só havia militares no hipismo”, explica António Frutuoso de Melo, diretor técnico e desportivo da Federação Equestre Portuguesa. Os cavaleiros civis só começaram a participar nos Jogos Olímpicos em 1972.
Nesse ano de 1924, os quatro militares fizeram parte de uma comitiva de 29 atletas portugueses de oito modalidades – equestre, atletismo, natação, esgrima, halterofilismo, vela, tiro e ténis. No grupo, nem uma mulher.
Na edição do Diário de Lisboa de 31 de julho de 1924, Nortberto de Araújo, no seu espaço de opinião, resumia assim a prestação nacional nas Olimpíadas: “os portugueses só fizeram boa figura na esgrima e na cavalaria.” E acrescentava com ironia: “Acho este resultado absolutamente lógico. Andar a cavalo e terçar armas foi sempre o nosso forte”.
O Comité Olímpico nacional teve muita dificuldade em recolher dinheiro suficiente para suportar os custos da participação portuguesa nos Jogos de Paris. Terá gasto cerca de 300 contos nesta missão, como refere o relatório do “Comite Olímpico Português” intitulado “Portugal na VIII Olympiada”, depositado na Biblioteca da Assembleia da República, que foi publicado dois anos depois do evento desportivo.
Bandeira improvisada
No caso do hipismo, os problemas começaram logo na inscrição. “A preparação da equipe foi pouca; nomeada tarde, o tempo de que dispunham para treinos era insignificante, basta dizer-se que a nomeação do Ministério da Guerra chegou à secretaria do C.O.P. depois de encerrada a inscripção!”, pode ler-se no relatório do líder da equipa.
Ultrapassada a parte burocrática, tiveram pela frente seis dias de viagem até à capital francesa. “Chegaram com tempo para se refazerem das fadigas e trabalharem uns dias antes da prova”, escreveu, deixando depois um reparo: “Não se perdia que fossem mais cedo mas a exiguidade dos nossos recursos, obriga-nos a limitar todas as despezas, mesmo com sacrifício”.
Os problemas não terminaram ali. Uma infecção intestinal do cavalo “Hebraico” ia complicando a situação. Contudo, recuperou a tempo e conseguiu entrar na competição, apesar de ainda convalescente.
Os portugueses estavam em desvantagem, admite o tenente-coronel. Mas, apesar de todas as dificuldades, o “milagre” aconteceu e Portugal conquistou uma medalha de bronze na disciplina de saltos de obstáculos por equipas, ficando atrás da Suíça (prata) e da Suécia (ouro). Sem nada o fazer prever, “as classificações obtidas excederam o que podíamos aspirar e foram invejadas por paizes cuja organização, preparação e elementos de que dispunham, eram incomparavelmente superiores aos nossos”.
De facto, acrescenta, “embora se reunisse o melhor que frequenta as nossas pistas, eles estavam longe, bem longe mesmo, da categoria dos seus adversários e a nossa victória mais se deve à alma dos nossos cavaleiros, à sua coragem inexcedível, à confiança absoluta em cumprir a sua missão, que ao valor dos seus cavalos que, porque não dizê-lo, eram olhados com desprezo, antes da tarde de 27 de Julho, em Colombes [estádio olímpico onde decorreu a prova]”.
Entrega da medalha de bronze à equipa portuguesa de hipismo nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924. O resultado era improvável e apanhou de surpresa a organização.
O resultado foi tão inesperado que não havia uma bandeira da República Portuguesa para hastear na cerimónia de entrega das medalhas olímpicas. Os cavaleiros recusaram-se a subir ao pódio e teve de ser improvisada uma bandeira com um pedaço de tecido verde e outro vermelho.
Portugal voltaria a conquistar uma nova medalha olímpica de bronze no hipismo 12 anos depois, nos Jogos de Berlim, em 1936, mais uma vez na prova de saltos de obstáculos. À frente ficaram a Alemanha (prata) e a Holanda (ouro). Nos Jogos de 1948, em Londres, o país conseguiu a sua última medalha olímpica nesta modalidade. Novamente o bronze, mas desta vez na prova de Dressage. Esteve perto de ganhar nova medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Helsínquia em 1952 (quarto lugar) e nos de Tóquio em 1964 (quinto lugar). Mais recentemente, nos Jogos de Tóquio 2020, conquistou o “Diploma Olímpico” na disciplina de Dressage ao terminar na 8.ª posição da final.
Não temos cavalos!
A explicação para a dificuldade de o país voltar ao pódio nesta modalidade está no próprio relatório escrito em 1924 por Manoel Latino, que terminava com um alerta: “Se pensarmos em concorrer à próxima Olimpíada, precisamos já de tratar da base principal, o cavalo, que nos falta em absoluto. Findo o meu relatório com um grito d’alarme, cavalos, não temos cavalos!”
O aviso mantém-se atual. “A qualidade do cavalo faz muita diferença”, afirma António Frutuoso de Melo, da Federação Equestre Portuguesa. Quando se juntam no mesmo animal todos estes ingredientes – a genética, a aptidão e o treino –, ele destaca-se. O problema é que em Portugal, ao contrário de outros países, não há capacidade financeira para manter estes cavalos. O país não tem a “tradição dos grandes proprietários, que têm os cavalos por prazer ou como investimento”. Quando surge um animal particularmente capacitado para a competição, “surgem ofertas completamente astronómicas que vêm de fora a que é complicado dizer não” e, “se o cavalo já estiver qualificado para os Jogos Olímpicos, ainda vale mais”. É a lei do mercado.
A modalidade até cresceu desde a pandemia e há muitos jovens federados. Mas é difícil chegar às medalhas olímpicas. “A qualificação é cada vez mais apertada. É muito difícil ficar entre os oito melhores do mundo”, reconhece.
Agora que já está a contar o tempo para os Jogos Olímpicos de Paris 2024, a delegação nacional está a preparar-se para a competição. Portugal terá uma equipa na Dressage e um cavaleiro individual nos obstáculos. Será que um século depois também haverá surpresas?