Portugal é um país adiado no essencial e adiantado no acessório. A pouco mais de um ano das eleições autárquicas, os debates estão lançados em torno de três pilares que dominarão toda a estratégia, táctica e comunicação dos partidos até às eleições: i) quem são os candidatos (seus defeitos e virtudes); ii) que frentismo eleitoral cada uma das partes consegue assegurar (nas autárquicas não são possíveis coligações pós-eleitorais, pelo que ganha a lista que tiver mais votos); e iii) que narrativas sairão vencedoras (entre os incumbentes e os desafiantes).
No primeiro pilar discutir-se-á se o candidato é próximo das pessoas ou vagamente arrogante, se é suspeito, arguido ou acusado nalgum processo, se é homem ou se é mulher, se o seu foco é a “sua terra” ou se estas eleições são só um “trampolim”, se é “de cá” ou se é um “pára-quedista”, se tem experiência política ou se é um arrivista. No segundo pilar discutir-se-á se a esquerda inclui a extrema-esquerda e está tudo bem, se o PPD não precisa do CDS para nada, se o CDS não precisa do PPD para nada, se a AD mantém o “não é não” – porque o Chega não, mas a IL sim – e se a AD é só AD ou uma AD assim-assim. Discutir-se-á, também, se os “cidadãos independentes” são mesmo independentes ou se simplesmente já não gostam dos partidos por onde andaram (ou os partidos não gostam deles), e se somam mesmo ou se é só para parecer que somam. No terceiro pilar discutir-se-á a limpeza das ruas, que agora é que estão bem ou que agora é que estão mal, os buracos na estrada que agora é que estão tapados ou que agora é que são crateras, as ciclovias e os espaços verdes: aqui raramente se falará verdade, mas tão só, tanto mais quanto maior e mais importante for o município, se digladiarão narrativas lançadas a conta-gotas primeiro, e em enxurrada depois, em artigos de opinião, entrevistas e notícias plantadas a jeito. Já começou, aliás.
Nisto, muito do essencial não se discutirá novamente e muito do acessório tomará conta de todo o espaço mediático.
[O estimado leitor que não tenha tempo nem pachorra para me aturar, pode ficar por aqui: o guião do que se discutirá depois da silly season e do orçamento (caso este seja aprovado) não variará muito do que acabou de ler.]
Não é isto, todavia, que, hoje, aqui quero discutir.
Proponho, hoje, voltar a uma discussão que tendo tudo a ver com o desenvolvimento económico e social e com a coesão territorial do país, ninguém quer discutir e que, de resto, dependeria do Governo que não tem, hoje, condições objectivas para o fazer; adiando-se, portanto, uma vez mais, um debate essencial.
O debate é o da descentralização vs regionalização (o versus não é equívoco, porque estou convencido que a regionalização contrariaria os melhores propósitos de descentralização). Para esta discussão destacaria quatro pontos e mais um. O primeiro, é o de que a pior coisa que se pode fazer para alcançar a descentralização é pensá-la e querer executá-la centralmente. O segundo, é o de que não há bondade intrínseca nas políticas públicas pela mera enunciação de motivos – como, por exemplo, o de que “temos que aprofundar a descentralização” –, mas que as políticas públicas são tão boas quanto nos aproximem dos fins para os quais são desenhadas e tão más quanto deles nos afastem. E quando digo fins, digo objectivos avaliados em resultados finais e não em resultados de processo: ou seja, interessa menos saber quantas competências foram descentralizadas em matéria de educação, e o calendário dessa descentralização, e interessa mais qual o resultado que isso teve no aumento da qualidade do ensino, quer do ponto de vista dos resultados dos alunos, das suas aprendizagens, quer do ponto de vista da estabilidade e qualidade das condições de trabalho dos professores; interessa menos saber quantas competências foram descentralizadas em matéria de saúde, e o seu calendário, e os agentes receptores dessas competências, e interessa mais qual o resultado que isso teve no funcionamento das urgências, na redução dos tempos de espera por primeiras consultas e cirurgias, e no resultado que isso teve na melhoria dos cuidados de saúde dos portugueses.
O terceiro ponto é que não há – permitam-me os anglicismos – uma one best way ou um one fits all em matéria de políticas públicas. Ou seja, o que pode funcionar – quer ao nível substantivo da descentralização, quer ao nível territorial da mesma – para uma área temática de governo, pode não resultar para outra. E isto mesmo se aplica aos agentes envolvidos (públicos, privados e sociais ou solidários) e à amplitude territorial. O que pode funcionar à escala municipal em matéria de educação, dificilmente poderá funcionar em matéria de transportes, que exigirá uma visão mais abrangente intermunicipal ou à escala de áreas metropolitanas.
O quatro e quase último ponto, mas de forma alguma o menos importante – quiçá o mais importante –, é a necessidade de proteger a autoridade do Estado. E isto faz-se assegurando a eficácia, a eficiência e a qualidade das políticas públicas, avaliadas nos termos que referi no meu segundo ponto: os resultados finais entregues ao país, aos cidadãos e às empresas.
Quero insistir muito na questão da autoridade do Estado: um Estado que legisla sem regular, e que regula sem ser capaz de fazer cumprir é um Estado que desiste da sua função principal. A Lei é dura, mas é a Lei, diziam os Romanos; porém, sem meios para se fazer cumprir, está enferma e fere de morte um dos pilares essenciais do Estado: a sua autoridade. Devemos, portanto, nesta matéria, ser tão parcimoniosos quanto a nossa capacidade de execução nos limitar. Ou seja, o que nesta matéria, 48 anos depois da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, se fizer sem se cumprir, ou se cumprir sem se vencer, será um fracasso que a sociedade portuguesa terá dificuldade em compreender e em aceitar.
Finalmente, o último ponto: a descentralização, num país com as características do nosso, não se deve fazer com a regionalização. Afirmo-o, também, mas não só, pelo que referi no meu ponto terceiro – o de que não há uma forma óptima para alcançar este desiderato – e no meu ponto quarto – que importa preservar a autoridade do Estado. A este propósito, “quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda a parte”, disse Barão de Montesquieu. Cito Montesquieu, porque a tentativa de resolver problemas a partir de produção legislativa tem, permitam-me o cinismo, no melhor cenário feito proliferar a dúvida e a litigância, e no pior cenário a desautorização do poder do Estado e o descrédito junto dos cidadãos.
O relatório da Comissão Independente para a Descentralização, que a Assembleia da República constituiu (2015-2019) tendo por missão abordar e desenvolver a temática da descentralização e quais os caminhos possíveis para a implementar – relembro que a CRP considera a Descentralização Administrativa e a Regionalização, desde 1976, como propósitos – aponta para três vias:
Regionalização mais suave, permitindo que as CCDR desempenhem um papel central na gestão dos fundos disponíveis, de forma a promover o desenvolvimento regional e o ordenamento do território;
Reforço do papel das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, a que podemos chamar, sem risco de erro grosseiro, a via da descentralização administrativa; e
Regiões Administrativas coincidentes com as NUT (nomenclatura de unidade territorial) de nível 2
É certo que a Lei n.⁰ 50/2018 já deu passos na direcção do reforço das competências das Autarquias Locais, concretizando, como se lê no art.º1.º, os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local, mas parece evidente que ainda há muito por fazer.
Voltando ao Relatório, entre a regionalização soft via CCDRs, a regionalização hard a partir das NUT 2 e o Reforço do papel das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, estou convencido ser esta última via a melhor opção. Digo-o, por estar convencido que é, de entre as opções, a que melhor pode dar resposta aos meus pontos de partida:
Os municípios são unidades administrativas bastante antigas, consolidadas no direito e na tradição e legitimadas pelo voto; e, por isso, aquelas que melhor podem contrapor com autoridade o poder do Estado central;
O mosaico de entidades intermunicipais permite encontrar soluções de baixo para cima e não de cima para baixo, potencialmente mais participado pelos cidadãos e demais agentes relevantes nos territórios, e isso permite um escrutínio mais próximo e, também por isso, mais focado nos resultados; e
Por ser a que melhor se adapta às naturezas específicas dos temas e dos territórios: one does not fit all.
Não faço esta afirmação, sem, contudo, tecer algumas considerações adicionais e, porventura, disruptivas, salvaguardando a validade do que afirmei no meu primeiro ponto, que, recordo, é: a pior coisa que se pode fazer para alcançar a descentralização é pensá-la e querer executá-la centralmente.
Para isso, vale a pena consultar um documento publicado pela OCDE, em 2019, chamado “Making decentralisation work: a handbook for policy-makers”, onde são apresentadas – em linha com as melhores práticas – várias linhas de acção para a descentralização. Não as apresentando todas, são 10, não quero deixar de salientar algumas e tecer sobre elas algumas considerações.
A primeira linha de acção é Clarificar as responsabilidades atribuídas aos diferentes níveis de Governo. É absolutamente essencial definir as responsabilidades de todos os actores, muito para além da mera definição das competências legais a descentralizar. Não me refiro exclusivamente aos papéis que, sobre as competências descentralizadas, se prendam, por exemplo, com a regulação, a fiscalização, o financiamento, a execução, e a avaliação de políticas públicas. Até porque isso está também no domínio das competências.
Quando digo que a mera definição de competências a transferir é insuficiente, é porque se, em boa parte delas, não estiver associada a definição de um nível de serviço, a competência pode ficar por exercer.
Ou, pior, e relembrando o meu segundo ponto – as políticas públicas são tão boas quanto nos aproximem dos fins para os quais são desenhadas e tão más quanto deles nos afastem –, se a competência tiver já sido exercida noutro nível de Governo e se após a descentralização da mesma a prestação de serviço público piorar, isso não só configura um falhanço particular, como tem um potencial de se transformar numa ameaça geral a todo o processo de descentralização, abrindo suspeitas e lançando descréditos.
A segunda linha de acção é Assegurar que todas as responsabilidades são adequadamente financiadas. O financiamento – ou, para usar uma expressão mais popular, o “envelope financeiro” – é normalmente a ponta visível de um iceberg bastante maior. Não há muito tempo, o Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, a propósito do programa Mais Habitação acusava o Governo de então de obrigar “os municípios a assumirem tarefas mal pagas em áreas em que há pouca experiência a nível autárquico – num processo a que só por ironia se chamou de Descentralização.”
A questão do financiamento é relevante. E abre espaço para outra questão que importa discutir: ou a competência transita de facto – e o órgão que a recebe tem condições objectivas para lhe dar resposta, e isso quer dizer dar resposta à competência nas circunstâncias em que a recebe – o tipo de serviço prestado, o nível de serviço prestado, o número de beneficiários presentes e as circunstâncias presentes, mas também a capacidade de adaptar a resposta – com fonte de financiamento própria – às alterações dessas circunstâncias presentes, designadamente as que se prendem com uma melhoria da prestação, com uma alteração do número de beneficiários ou com uma alteração das condições económicas e sociais dessa prestação, ou então, se isto não se verificar, estamos perante uma mera contratualização de serviços, onde os executores estarão sempre reféns de negociação do tal “envelope financeiro” a cada novo exercício orçamental.
A terceira linha de acção, e relacionado com o que disse anteriormente, é, portanto, Reforçar a autonomia fiscal dos níveis dos sub-níveis de Governo, visando a accountability.
A quarta linha é Reforçar a governança inovadora e experimental, e promover o envolvimento cidadão. A descentralização tem tudo a ganhar com inovações e projectos-piloto, que não têm que ser levados à prática em todos os territórios, e ser possível, mediante a capacidade organizativa dos municípios e das entidades intermunicipais, fazer certas coisas nuns locais e não noutros.
A promoção da concorrência intermunicipal deve ser vista como virtuosa e promotora de desenvolvimento regional. E isto leva-nos a uma outra linha de acção, referida no guião da OCDE, que é o de Permitir e deixar acontecer descentralizações assimétricas.
Finalmente, e porque isso é essencial num estado de direito e numa democracia liberal, e serve tanto para a descentralização como para a administração central do Estado, a sexta linha de acção é Aumentar consistentemente os mecanismos de transparência, a disponibilização de dados e fortalecer os mecanismos de monitorização.
Finalmente, uma palavra mais de Politics e menos de Policy, mais de Política com letra maiúscula e menos de políticas públicas. Milton Friedman afirmou que “A descentralização é a melhor maneira de garantir a liberdade individual e a responsabilidade pessoal na tomada de decisões.” A esta afirmação queria acrescentar outras duas, de dois portugueses fundadores dos partidos que hoje estão no Governo. “O Poder Local é a base de segurança de toda a verdadeira democracia: as municipalidades são fundamentais como centros de decisões locais e não podem ser absorvidos por um Estado centralizado, o qual poderá tornar despótico, mesmo nos termos democráticos” e “Os Municípios estão para a democracia-cristã, como os sindicatos estão para o partido comunista”. Estas frases, respectivamente de Francisco Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa, tendo sido proferidas há mais de 4 décadas, parecem estar ainda por cumprir. Considerando que as próximas eleições – nenhum evento anómalo ocorra pelo caminho – são as autárquicas, era bom que este tema voltasse à agenda dos candidatos, dos partidos e do país.
Mas isto sou eu, já cansado, antes de férias, a olhar para o país com as lentes que o país recusa usar para se olhar. O estimado leitor que não passou dos dois primeiros parágrafos tem aí todo o guião para as discussões a que o país, depois da silly season e do debate do orçamento, se entregará. Boas férias!
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia