“O que é que o homem disse?”: eis a pergunta que repeti várias vezes e a diversas pessoas, debalde, na 2ª feira à noite. Falava, claro, de Pedro Passos Coelho, a propósito da sua apresentação do livro “Identidade e Família”. Debalde, repito. Debalde, porque, à pergunta, as respostas que recebi foram: “foi fazer o lançamento do livro”, ai; “estava lá o Ventura”, ui; “que tristeza”, oh; “que desilusão”, ah.
Imaginei o pior, não sem uma dúvida persistente: será possível? “O que raio é que o homem terá dito de tão chocante e civilizacionalmente retrógrado?”, pensei insistentemente. Teria defendido a reversão da lei do aborto? Teria advogado julgamentos para as “abortistas”? Teria defendido “terapia de conversão” para os homossexuais? Reversão do casamento gay? Uma superioridade ou prerrogativa especial do homem sobre a mulher? Cercas sanitárias a etnias e a migrantes em função da proveniência? Teria, em síntese, defendido algo que se caracterizasse por um retrocesso nas conquistas humanistas levadas a cabo pelo Ocidente ao longo dos séculos, ou atacado alguém ou algum grupo lançando-lhe algum anátema?
Fui ver e não, Passos não tinha defendido nada daquilo. Qual voz de antanho, vinda lá de Stratford-upon-Avon, o meu pasmo: much ado about nothing. Afinal, Passos limitou-se a dizer que a família é a célula base da sociedade e a primeira de socialização, que a ideologia de género é um experimentalismo que se dispensa da escola pública, e que é contra a eutanásia porque cabe ao Estado proteger a vida e não definir os termos em que lhe pode aplicar o fim.
Sobre o livro e o Movimento que o lançou ainda disse que “os motivos que reúnem esta associação são muito nobres, eu neles me revejo nesse sentido, mesmo que possa não subscrever todas as opiniões que são expressas – e ainda bem. Julgo que ninguém se revê em todos os pensamentos que existem. Mas devemos respeitá-los de uma forma íntegra e é isso que eu espero que os próximos anos possam devolver ao espaço público português.”
Em síntese, o normal: numa sociedade livre e pautada por um debate decente e responsável, quem apresenta um livro não se compromete necessariamente com o seu conteúdo, de que não é autor, e deve ser responsabilizado, sim, mas pelo que diz e pelas ideias que defende. Disse normal, mas talvez se justifique rever tal entendimento: este mesmo jornal em que escrevo, um ou dois dias depois, para ilustrar uma notícia onde se lê que o Movimento Acção Ética quer propôr a criação de um “estatuto de dona de casa”, porque “há coisas que só as mulheres podem fazer”, escolhe uma fotografia com… Pedro Passos Coelho. Ora, isso foi coisa que Passos nunca defendeu em lado nenhum, nem consta que faça parte do Movimento. Infelizmente, é caso para dizer, contrariando o velho anúncio da Folha de São Paulo que usava uma foto do Hitler e que tinha como corolário “pode-se dizer uma grande mentira contando só verdades”, que também se pode dizer uma grande mentira usando só uma fotografia verdadeira (descontextualizada).
Mas o arraial de tiro ao Pedro não se ficou por aqui. A esquerda “progressista” veio, claro, sem surpresa, primeiro. As aspas são para levar a sério: nunca se viu tanto “progressista” anti-progresso e tantos paráclitos dos “avanços civilizacionais” tão inimigos do Ocidente. São os ambientalistas contra todas as formas de energia e desenvolvimento económico; são os da defesa das “reparações históricas” que querem cancelar livros e derrubar estátuas; são os anti-racistas que odeiam brancos; são as feministas que odeiam homens; são os trans que querem cancelar os pais cis; são os Queer for Palestine (a piada de humor negro faz-se sozinha); et caetera, et caetera. O “progresso” destes “progressistas” é sempre excludente, para trás e para baixo. Longe vão os tempos em que o progressismo era inclusivo, para a frente e para cima: as sufragistas defenderam o alargamento do sufrágio a outros e não a supressão do direito a uns; Martin Luther King lutou por direitos iguais para os negros e não por uma culpa sem expiação dos brancos; mesmo o movimento sindical, descontado o ramo marxista que faz da luta de classes o seu alfa e a destruição do capitalismo o seu ómega, lutou pelos direitos dos trabalhadores sem querer abolir a existência dos patrões. Neste caso, foi a receita do costume: a caricatura, a desqualificação e o ataque ad hominem.
Mas pior do que a esquerda, foi o veio e não veio da direita: na verdade, à direita, sobrou melindre e hipocrisia onde falta cada vez mais polifonia. Eu diria que, há uns anos, o que Passos disse seria suficiente para reunir, pelo menos à direita, um amplo e pacífico consenso. Todavia, agora, precisamente porque foi Passos que o disse e porque André Ventura estava presente, parece que não.
Há uma direita que padece do trauma dos 3 Ts: quando não é o tema é o timing, quando não é o timing é o tom. Ora o tema é desadequado, ora o timing é inconveniente, ora o tom é censurável; em síntese: umas vezes o silêncio é cínico, outras vezes o silêncio é cobarde. Para uma certa direita, nunca é boa altura para discordar da esquerda, a menos que seja – e mesmo assim nem sempre – em matéria económica.
Estou muito à-vontade nesta afirmação: defendi as linhas vermelhas e o “não é não” ao Chega e, não obstante ser um conservador, sou na verdade um anarco-conservador, pelo que o tanto que gosto de ordem deploro em igual medida o exercício da autoridade sobre o indivíduo e as famílias. Parece paradoxal, eu sei, mas é irrelevante para o caso. O que é relevante para o caso é que estas questões são de tal forma complexas, que não podem prescindir de debate permanente, e não pode uma das partes ser sujeita à caricatura e inibida de nele participar. Pode-se ser a favor desta Lei do aborto e não pretender alterá-la, ao mesmo tempo que se é contra a proposta de do Livre de alargamento para as 14 semanas ou, como também o Livre propõe e Macron concretizou, de inscrever o aborto como direito constitucional? Pode-se ser contra a eutanásia, por se considerar que o Estado não esgotou a sua função primordial de protecção da vida e é discutível a sua autoridade para definição das condições de morte? Pode-se ser contra a deologia de género” nas escolas, mormente quando alicerçada apenas em hipóteses que derrogam com soberba ensinamentos científicos, designadamente da Biologia?
Volto ao trauma dos 3 Ts da direita: será que a direita pode falar sobre os temas que quiser, quando quiser, sem ter que pedir licença à esquerda ou atender à “conveniência circunstancial”, para não prejudicar as eleições seguintes ou não melindrar o Governo em funções?
Dizem-me, neste frémito, que a família não está ameaçada. Depende da perspectiva. Certo é que, haver quem o pensa, talvez merecesse, à direita e, já agora, à comunicação social livre, pelo menos, mais indulgência do que melindre. Pelo menos tanta indulgência e tão pouco melindre quanto o que aplicaram, aqui há 2 anos ao CES (sim, o do Doutor Boaventura Sousa Santos), que organizou um colóquio subordinado ao tema “Reflexões não-monogâmicas e porquê a família deve acabar”. Este colóquio, organizado por um organismo público e financiado com dinheiro dos impostos para o Ensino Superior (o tal que motivou o horror da esquerda por não aparecer no nome do Ministério com esta tutela deste Governo), foi também financiado pelo Compete Portugal 2020 e pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia. Repito: uma entidade pública a defender o fim da família, e financiada por dinheiros públicos, dinheiros esses que supostamente deveriam ser dirigidos à investigação científica e ao aumento da competitividade do país. Nisto, houve quem apresentasse a candidatura achando que era boa, quem avaliasse a candidatura confirmado que era boa, e quem aprovasse a candidatura anunciando que era boa. Mas uma associação da sociedade civil lança um livro numa editora privada, sem recurso a um cêntimo dos impostos, e aqui d’El-Rei.
Estou certo que foi com este espírito que Pedro Passos Coelho fez a apresentação do livro. Outras leituras devem ser exigidas a quem leu o que ele não disse. Mesmo a nota – que sendo marginal, alguns leram como essencial – de suposta aproximação ao Chega, e que eu não acompanho (a aproximação, não a leitura), tem que ser encarada com normalidade democrática, sem que a desqualificação e o escândalo sejam os únicos instrumentos disponíveis em democracia. Porque não sendo, são aliás os menos adequados.
Termino o que já vai longo: esta coisa de que há temas que a direita não pode discutir e que, quando o faz, é, no mínimo, inconveniente e, na maior parte das vezes, estúpida, também já se ultrapassava, não? Podemos andar a toque de caixa dos pronomes, das reparações históricas, do aborto inscrito como direito nas constituições, mas a direita, se for esperta, só pode defender a baixa de impostos. Menos o sucessório, porque a herança é uma injustiça social, como a Peralta perora… Por favor…!
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.