O oceano foi o parque infantil de Alex Schnell. Fez-se bióloga marinha nas praias do leste de Sydney, na Austrália, onde passava todo o seu tempo livre. Aos cinco anos, lembra-se de sair da escola, pousar a mochila em casa e descer um pequeno caminho até às piscinas naturais. Foi um encontro com um polvo que cimentou o amor por todas as criaturas marinhas. Alex praticamente perseguia estrelas-do-mar e caranguejos, até que um dia a sua mão roçou no que pensava ser uma lesma-do-mar. Afinal, era um polvo, uma criatura até ali desconhecida para Alex. Ficou “surpreendida e encantada com a curiosidade” daquele animal por ela e soube o que queria fazer para o resto da vida.
Começou a interessar-se não só pelo oceano, mas também pela forma como os animais marinhos pensam, se comportam, têm memória e fazem planos. Os 15 anos que passou a estudar cefalópodes e os seus vários tipos de inteligência abriram-lhe as portas para a participação na minissérie Os Segredos dos Polvos, que se vai estrear no canal National Geographic Wild e no Disney+ a 22 de Abril. Será a sua primeira vez em frente às câmaras, numa série de três episódios realizada por James Cameron, cineasta vencedor de um Óscar e explorador, e narrada pelo actor Paul Rudd.
Durante os meses que a equipa passou em filmagens, Alex desenvolveu uma relação de proximidade com Scarlet, um polvo-diurno (da espécie Octopus cyanea) que vivia na Grande Barreira de Coral da Austrália e que acabou por se tornar numa das personagens principais da série documental. A cada mergulho, Alex ficava mais próxima de Scarlet e conseguiu ter um acesso privilegiado às suas capacidades extraordinárias, como diz ao PÚBLICO.
Nos últimos anos, o interesse por estas criaturas misteriosas, com superpoderes únicos e alienígenas e que já existiam antes dos dinossauros, cresceu. Sabemos que são verdadeiros mestres do disfarce — conseguem mudar a textura e a cor da sua “pele” centenas de vezes por dia e em menos de um segundo, o que ainda é mais impressionante, visto que são daltónicos —, que têm um cérebro bastante evoluído com zonas que cumprem funções parecidas com as dos vertebrados, que têm sangue azul e a capacidade de se espremerem em espaços do tamanho dos seus olhos. Mas os cientistas estão apenas a começar a compreender o que estes seres com uma inteligência extraordinária e vidas sociais secretas têm para nos ensinar.
Alex, o que podemos esperar aprender com esta série?
Acho que vamos revelar muitos segredos dos polvos. Quando comecei a estudar estes animais, há 15 anos, ouvia muitos “porquês”. Diziam-me que eram nojentos ou viscosos ou simplesmente estranhos, mas penso que essa percepção mudou. As pessoas parecem estar realmente interessadas nos polvos. É a idade de ouro deles e mesmo quem trabalha de perto com estes animais pode descobrir coisas incríveis na série. Descobrimos que uma espécie em particular tem um ritual de acasalamento. Nunca tínhamos ouvido falar disto nos polvos, porque são animais solitários. Também filmámos uma espécie em particular a utilizar ferramentas de uma forma que nunca tínhamos visto antes.
Além de revelar segredos sobre o seu comportamento, espero que a série realce a vida do polvo, esta criatura extraordinária que vive em cada um dos nossos oceanos, que neste momento precisam mesmo de ser tratados porque enfrentam muitas crises, como as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e os riscos para o bem-estar. Penso que, para curar os nossos oceanos, temos de ser capazes de nos interligarmos com eles, de sentirmos empatia. E é muito difícil fazê-lo quando pensamos nos oceanos apenas como uma grande massa de água. Temos de pensar nas criaturas que neles habitam. Na nossa série mostramos que o polvo é vulnerável, que é inteligente, que tem a capacidade de sentir emoções.
Gostava de poder voltar à casa de Scarlet neste momento. A Grande Barreira de Coral, em particular, está a sofrer a um dos mais extremos branqueamentos de corais de sempre, foi algo muito doloroso de ver. Espero que a série realce não só a vida e o comportamento do polvo, mas também, pelo facto de mostrarmos a vulnerabilidade, a inteligência e as emoções destes animais, que as pessoas se preocupem mais com os oceanos. Quando pensamos nestas crises convergentes das alterações climáticas, da perda de biodiversidade e dos riscos para o bem-estar dos animais marinhos, é muito fácil sentirmo-nos sobrecarregados. Ouço muitas vezes ‘O que é que podemos fazer? Como vou sentir empatia pelo oceano? É tão vasto’. Acho que a resposta é pensar nas criaturas que ali vivem, para conseguirmos sentir empatia e compaixão e pormos esses sentimentos em acção.
Como conheceu Scarlet, um polvo que é uma das personagens principais da sua série, e como é que a vossa relação evoluiu durante as filmagens?
Criámos uma ligação incrível e fiquei muito comovida com a rapidez com que a Scarlet começou a confiar em mim. Criar essa ligação pode demorar vários dias, temos de visitar o mesmo indivíduo vezes sem conta. Inicialmente era muito tímida, estava escondida na sua toca, mas mudou muito rapidamente. Saiu do esconderijo e estabeleceu contacto, estendeu o tentáculo e tocou-me, deixando-me nadar com ela enquanto caçava.
Cada vez que regressava, parecia reconhecer-me muito rapidamente. Eles têm 200 ventosas em cada braço e por isso conseguia reconhecer-me através do tacto. Sei que não parece muito porque os humanos têm laços sociais formados com muitos animais diferentes, mas há que pensar que um polvo não tem nada para se proteger. Não tem esqueleto, carapaça, garras, dentes, por isso é que fiquei impressionada com o facto de, apesar da sua extrema vulnerabilidade, ela ter baixado a guarda e me ter deixado entrar no seu mundo.
Infelizmente, já não tenho qualquer contacto com a Scarlet porque a maioria das espécies de polvo vive apenas entre um e dois anos e a última vez que a vi estava a acasalar com um macho. Depois de porem os ovos, os polvos-fêmeas morrem. Foi um momento muito doloroso depois de ter criado uma ligação tão forte com ela, mas esse é o ciclo de vida de um polvo.
Durante a série, também acompanhamos de perto a forma como os polvos se reproduzem. O que é que podemos dizer sobre este acto?
Eu digo sempre que o ritual de reprodução de um polvo não é exactamente um abraço caloroso porque, por vezes, os polvos-fêmeas comem o macho depois de copularem. Por esta razão, o macho mantém sempre alguma distância. É quase um encontro gélido, um acto distante. Não há o abraço caloroso que vemos noutros animais.
O órgão reprodutor do macho é um braço especializado que ele desenrola para alcançar o corpo dela. Depois, pequenos volumes de esperma viajam pelo braço até à fêmea. Foi simplesmente fantástico assistir a isto porque foi a primeira vez que vimos estes pequenos pacotes de esperma a viajar pelo braço do polvo.
Também não tínhamos visto antes o comportamento de cortejar. Normalmente, o que acontece é que o polvo-macho aparece e tenta a sua sorte, mas a fêmea pode afastá-lo. Tivemos a sorte de ver esta dança elaborada entre este polvo-macho e uma fêmea: ele muda de cor e nada de um lado para o outro. Era algo que se poderia imaginar sobre as aves tropicais, que têm belas e elaboradas danças de acasalamento a fazer. Na série vemos isso numa espécie de polvo e foi uma revelação, algo que não fazíamos ideia que acontecia.
Refere, a certa altura, que os polvos são seres sociais. Como é que podemos dizer isso de animais que são órfãos desde o dia em que nascem?
Penso que não são sociais no sentido a que estamos habituados. Os mamíferos, por exemplo, são extremamente sociais. Crescem em grupos familiares, têm cuidados parentais, estabelecem relações com membros da família, como tios e irmãos. Os polvos nascem e estão sozinhos. A mãe morre pouco depois de dar à luz porque não se alimenta durante todo o período da gravidez e os bebés acabam por se afastar logo do resto dos irmãos.
Ainda assim, há casos em que podemos encontrar membros da mesma espécie ou de espécies diferentes que vivem em estreita proximidade. O que os junta, geralmente, é o habitat ou a disponibilidade de alimento. Não os vemos a cuidar uns dos outros ou a estabelecerem relações. No entanto, acho que estamos a pensar mal na sociabilidade quando se trata do polvo porque eles parecem ser capazes de formar alguns tipos de parcerias com diferentes espécies. Assistimos a isso com o polvo-diurno, que forma parcerias de caça com diferentes peixes para caçar. Também sabemos que alguns polvos que vivem em aquários criam laços fortes com os seus cuidadores e reconhecem-nos. Têm os seus favoritos.
Há muitas pessoas que têm uma relação com um polvo, felizmente não sou a única. Há muitas situações em que o polvo estabelece contacto e é muito difícil de explicar porquê. A minha teoria — e sei que não há provas que a sustentem — é que talvez seja porque nasceram órfãos e não têm para onde ir. Estão sozinhos e têm de aprender muito rapidamente como sobreviver e a curiosidade é a razão pela qual interagem com outras espécies. Vêem ali uma oportunidade de aprendizagem. É um aspecto muito fascinante das suas vidas.
Outro aspecto fascinante é o facto de poderem mudar de cor e de textura para se adaptarem a determinados ambientes. Como é que os polvos fazem isto?
Os polvos e os seus primos da família dos cefalópodes têm pequenas células na sua pele que estão cheias de pigmento e são controladas pelos músculos que as rodeiam, expandindo-se e contraindo-se. Assim, quando se expandem, a cor vem à superfície. Esses músculos são directamente controlados pelo cérebro, que está a observar um determinado ambiente e depois toma as decisões sobre como se misturar. A mudança da textura da pele é feita através de pequenas estruturas musculares semelhantes às que temos na língua, podem passar de uma textura muito suave para muito espinhosa em segundos. E, mais uma vez, tudo isto é feito através da visão, nem sequer têm de tocar no objecto cuja textura pretendem imitar. São animais incríveis que têm estas características comportamentais sem igual no restante reino animal.
Aprendeu alguma coisa que não soubesse antes, durante as filmagens desta série?
Sim, o comportamento de cortejar é novo para nós. Também encontrámos uma nova forma de utilização de ferramentas por parte do polvo-coco [Amphioctopus marginatus]. Esta espécie vive numa paisagem muito árida, não tem locais como os corais para se esconder, daí que transportem consigo duas metades de um coco como se fosse uma casa móvel, e usam-nas como protecção. Estava entusiasmada para ver esse comportamento ao vivo, mas acabámos por receber mais do que esperávamos.
Estávamos a acompanhar um polvo e ele estava a ser seguido e ameaçado por um camarão-louva-a-deus-palhaço. É apenas um camarão minúsculo, mas dá murros 50 vezes mais rápidos do que um piscar de olhos. Podem imaginar como isso seria doloroso ou mesmo perigoso, porque o polvo não tem nada para se proteger. Nesse momento, o nosso polvo-coco viu uma concha, correu para a apanhar e usou-a como escudo. Foi um tipo de utilização de ferramentas diferente das que tínhamos documentado. Foi um momento incrível, lembro-me de gritar de entusiasmo debaixo de água.
Haverá mais segredos para descobrir sobre os polvos? E espera descobri-los?
Sim, sem dúvida. Penso que ainda só arranhámos a superfície das capacidades destes animais. Acho que precisamos de concentrar a nossa energia em tentar adaptar aos polvos as experiências que fazemos com chimpanzés, crianças pré-verbais e corvos, para podermos ver se são capazes de resolver o mesmo tipo de tarefas que requerem inteligência. Temos estado a analisar o cérebro do polvo e os diferentes tipos de aprendizagem durante o último século, mas a análise de capacidades cognitivas específicas e complexas só foi possível na última década, é uma área recente.