No final do ano de 2022, a inteligência artificial (IA) entrava de rompante pela porta da frente da ribalta. Em novembro, foi lançado o ChatGPT pela OpenAI, uma organização norte-americana sem fins lucrativos de desenvolvimento de tecnologia inteligente. Foi um sucesso imediato. Com um interface simplista, a aplicação responde a qualquer tipo de comando humano que lhe peça produção de conteúdo. Ensaios, histórias infantis, rimas, anúncios publicitários ou peças de teatro. O céu é o limite. O interesse gerado foi abismal e, no espaço de uma semana, o ChatGPT atingiu um milhão de utilizadores. Por comparação, o Instagram demorou 12 semanas para chegar à mesma marca. O Facebook 40. A Netflix 168. E se até aí o conhecimento sobre automação estava relativamente restrito aos profissionais que lidavam com o setor, a partir desse momento as conversas sobre IA passaram a fazer parte do dia a dia de multidões.
Entre os teóricos, é inegável o potencial da inteligência artificial. Saindo do campo da produção de conteúdo para outros ramos, poderemos no futuro assistir a avanços até ao momento considerados inalcançáveis. “Com o tempo, a IA será a maior mudança tecnológica que vamos ver nas nossas vidas. É maior do que a transição da computação de desktop para móvel, e pode ser maior até do que a própria internet. É uma reestruturação fundamental da tecnologia e um incrível acelerador da engenhosidade humana”, escrevia Sundar Pichai, CEO da Google, numa publicação em setembro de 2023. “Aprimorar a IA para ser mais útil para todos e implantá-la de forma responsável é a maneira mais importante pela qual vamos cumprir a nossa missão pelos próximos 10 anos ou mais”.
A IA representa um avanço tecnológico que poderia revolucionar diversos aspetos da sociedade, desde a medicina até à educação, passando pela resolução de problemas globais como a fome e as mudanças climáticas. Na verdade, é importante reconhecer que esta tecnologia já é utilizada de maneira promissora em diversas áreas. Por exemplo, na medicina, facilita no diagnóstico de doenças, otimiza tratamentos e até mesmo descobre novos medicamentos mais rapidamente. Na agricultura, tem ajudado a aumentar a eficiência na produção de alimentos, contribuindo para a segurança alimentar global. Além disso, em setores como a logística e a indústria, a IA tem sido usada para melhorar a eficiência operacional e reduzir custos.
O lucro à frente da ética
No entanto, apesar desses avanços, é inegável que uma parte significativa do desenvolvimento da IA está direcionada para aplicações mais superficiais, como filtros de fotos e assistentes virtuais para tarefas quotidianas. O aparecimento do ChatGPT parece ter direcionado o desenvolvimento de inteligência artificial para outras áreas menos prioritárias, deixando de lado questões cruciais que enfrentamos como sociedade.
Segundo os especialistas, uma das razões para essa tendência é a procura do mercado. Empresas de tecnologia procuram constantemente formas de atrair e reter utilizadores e, muitas vezes, isso significa desenvolver produtos que tenham apelo imediato, como aplicações de redes sociais com recurso a IA. Além disso, há uma pressão por lucro que muitas vezes supera considerações éticas e de impacto social. “O problema não são os programadores.
Como todos nós, eles trabalham para patrões, que decidem em que investir… mesmo aqueles que trabalham para o serviço público (como universidades) estão condicionados pelas direções dadas pelos programas de financiamento”, explica Virginia Dignum, investigadora portuguesa que integra o grupo de especialistas de IA das Nações Unidas.
O fenómeno Lensa
Um exemplo disso é o fenómeno Lensa. A aplicação gera imagens através de fotografias, e a sua popularidade explodiu, com milhões de pessoas a carregarem fotos suas e a simularem vários resultados. Contudo, a utilização massiva da Lensa levantou problemas éticos. Primeiro, foram diversos artistas que reclamaram que a tecnologia estaria a usar trabalhos seus para inspiração sem permissão. Mais tarde, os alarmes soaram relativamente à utilização de fotografias não autorizadas, à criação de “deepfakes” (técnica que combina e sobrepõe imagens e vídeos existentes para criar conteúdo audiovisual falso, muitas vezes realista e convincente) e à partilha de “fake news”.
Surgiram várias aplicações semelhantes num curto espaço de tempo, lançando o debate em torno dos direitos autorais e da proteção da propriedade intelectual no contexto da IA. A capacidade das máquinas de criar conteúdo original levanta questões sobre quem detém os direitos sobre esse conteúdo e como ele deve ser compensado. Além disso, o uso da IA para automatizar tarefas anteriormente realizadas por seres humanos levanta ainda preocupações sobre o futuro do trabalho e o aparecimento de desigualdades económicas.
O fenómeno Lensa acabou por mostrar a forma como uma tecnologia aparentemente inofensiva se poderia tornar perigosa e vários especialistas e agentes do setor intensificaram o apelo aos decisores políticos para começarem a olhar a sério para a questão da legislação da inteligência artificial.
“A IA é a nova fronteira da humanidade. Uma vez ultrapassada esta fronteira, a IA conduzirá a uma nova forma de civilização humana. O princípio orientador da IA não é tornar-se autónoma ou substituir a inteligência humana. Mas devemos garantir que seja desenvolvida através de uma abordagem humanista, baseada em valores e direitos humanos. Somos confrontados com uma questão crucial: que tipo de sociedade queremos para o amanhã? A revolução da IA abre perspetivas excitantes, mas as convulsões antropológicas e sociais que traz consigo exigem uma ponderação cuidadosa”, escrevia, já em 2018, Audrey Azoulay, diretora da UNESCO.
No ano passado, António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), frisava a importância de pôr a tecnologia inteligente a olhar para o sítio certo. “Precisamos de uma corrida para desenvolver a IA para o bem”, enfatizava no primeiro Conselho de Segurança da ONU dedicado exclusivamente à inteligência artificial, “uma IA que seja fiável e segura e que possa acabar com a pobreza, banir a fome, curar o cancro, dinamizar a ação climática [e]… impulsionar-nos para” os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O ChatGPT e as alterações climáticas
Mas se resolver os problemas da humanidade pode parecer um desafio complexo, a inteligência artificial tem, pelo menos, uma boa resposta na ponta da língua. Perguntámos ao próprio ChatGPT de que forma a tecnologia inteligente pode resolver a crise climática e a resposta foi, no mínimo, esclarecedora.
“A IA pode analisar grandes volumes de dados climáticos em tempo real, ajudando a identificar padrões, tendências e anomalias. Com base nessa análise, os cientistas podem fazer previsões mais precisas sobre as mudanças climáticas, eventos extremos e outros fenómenos climáticos”, explica a aplicação no campo do monitoramento e previsão do clima.
Fala ainda de otimização de energia e recursos, com a IA a “ser usada para otimizar o consumo de energia em edifícios, sistemas de transporte e redes elétricas. Algoritmos de IA podem aprender padrões de uso e identificar formas de reduzir o desperdício de energia. Além disso, a IA pode ser usada para otimizar a alocação de recursos, como água e eletricidade, em áreas afetadas por secas ou escassez.” Por outro lado, a IA “pode aprimorar os modelos climáticos existentes, permitindo simulações mais precisas e detalhadas das alterações climáticas. Isso ajuda os cientistas a entender melhor os diferentes fatores que contribuem para as mudanças climáticas e a desenvolver estratégias eficazes de mitigação e adaptação”.
A resposta do ChatGPT falou ainda de gestão de desastres naturais, agricultura sustentável e sensibilização e educação. Fomos ainda mais longe e pedimos soluções específicas para o degelo no Ártico e, mais uma vez, a aplicação apresentou um rol de opções interessantes para serem exploradas. Contudo, ressalvou “que a IA não é uma solução única, mas pode ser uma ferramenta poderosa quando combinada com esforços globais, políticas adequadas e ação coletiva em prol do meio ambiente”.
Inteligência artificial para o bem
O termo “AI for good” passou a ser popularmente associado à utilização de tecnologia inteligente em prol do futuro da humanidade. Se o pesquisarmos num motor de busca, veremos que várias organizações internacionais e até empresas privadas desenvolvem as suas próprias iniciativas de “AI for good”, de forma a patrocinar e fomentar boas-práticas neste setor.
Contudo, o maior programa de “AI for Good” foi desenvolvido pela International Telecommunication Union (ITU), uma agência especializada das Nações Unidas responsável por questões de tecnologia da informação e comunicação. A ITU lançou oficialmente a iniciativa “AI for Good” em 2017. O objetivo é trabalhar em parceria com uma ampla gama de partes interessadas, incluindo governos, empresas privadas, organizações sem fins lucrativos, instituições académicas e outras agências da ONU, para promover o uso responsável e benéfico da inteligência artificial em todo o mundo. A iniciativa busca alavancar o poder da IA para enfrentar desafios globais e alcançar os ODS das Nações Unidas.
Com o incentivo ou não deste tipo de programas, são já várias as empresas a trabalhar com inteligência artificial para soluções de impacto que resolvam problemas na sociedade. Alguns exemplos são a Recycleye, uma startup sediada no Reino Unido que utiliza IA e visão computacional para automatizar e melhorar o processo de triagem de resíduos, aumentando a eficiência da reciclagem e reduzindo o desperdício; a Corti, uma empresa dinamarquesa que desenvolveu um sistema de IA para ajudar profissionais de saúde no atendimento de emergência. O sistema analisa chamadas de emergência em tempo real e fornece sugestões para ajudar os operadores a tomarem decisões mais informadas e rápidas; e também a Zipline, uma startup norte-americana que utiliza drones e algoritmos de IA para entregar suprimentos médicos, como sangue e medicamentos, em áreas remotas e de difícil acesso, especialmente em países em desenvolvimento.
Em Portugal, a Unbabel – que a par da DefinedAI é das únicas tecnológicas portuguesas a desenvolver inteligência artificial de raiz – liderou o consórcio que criou, com a ajuda de fundos comunitários, o Centro para a IA Responsável.
“O Center for Responsible AI irá ter uma grande importância para Portugal. O impacto da inteligência artificial nas nossas vidas é cada vez maior e o Center for Responsible AI irá desenvolver produtos de IA da próxima geração, baseados nas tecnologias e princípios da inteligência artificial responsável. O centro criará um círculo virtuoso entre startups, centros de investigação e líderes de indústria nesta área a uma escala única em Portugal. Esta missão está confiada a uma equipa de excelência que acredito irá estar à altura deste enorme desafio”, indicava em comunicado, em maio do ano passado, José Manuel Fonseca de Moura, chair do conselho geral.
Desafios para contornar
Contudo, criar tecnologia de IA em prol do bem da humanidade apresenta uma série de desafios significativos. É novamente o próprio ChatGPT que nos ajuda a enumerá-los. Alguns dos principais desafios incluem o viés algorítmico, já que “os algoritmos de IA podem refletir preconceitos existentes nos dados de treinamento, o que pode resultar em decisões discriminatórias ou injustas. Superar o viés algorítmico é crucial para garantir que a IA seja justa e equitativa”; questões de privacidade e segurança dos dados, já que “a coleta e o uso de grandes quantidades de dados pessoais para treinar modelos de IA levantam preocupações sobre a privacidade e a segurança dos dados”, indica a app, e também de transparência e interpretabilidade, uma vez que é difícil entender como os modelos de IA tomam decisões.
Além destes, há ainda desafios no campo da desigualdade de acesso, uma vez que “o desenvolvimento de tecnologias de IA pode exacerbar as desigualdades existentes, especialmente se não houver acesso igualitário a essas tecnologias”, o impacto no emprego e na economia já que “a automação impulsionada pela IA tem o potencial de substituir muitos empregos e reconfigurar setores inteiros da economia”; e por último questões éticas várias. “A IA levanta uma série de questões éticas, incluindo responsabilidade, justiça e autonomia. Desenvolver frameworks éticos e sistemas de governança eficazes é fundamental para garantir que a IA seja utilizada de maneira responsável e benéfica para a humanidade.”
Estes são apenas alguns dos desafios enfrentados ao criar tecnologia de IA em prol do bem da humanidade. “Superá-los exigirá esforços colaborativos e multidisciplinares de governos, empresas, sociedade civil e academia”, conclui o ChatGPT.
*Este artigo foi escrito com a utilização do ChatGPT que está devidamente identificada ao longo do texto.