Está quase a cumprir-se o ano mais quente que vivemos na Terra desde que se fazem registos: Abril foi mais quente a nível global do que qualquer outro Abril desde que há registos, e há 11 meses consecutivos que é assim, recordes atrás de recordes. As inundações gigantescas no Rio Grande do Sul, no Brasil, que deixaram pelo menos 60% do estado debaixo de água, estão a mostrar-nos as consequências do aquecimento global, quando se conjuga com a incúria dos políticos.
Este pode ser o momento Katrina do Presidente Lula da Silva, dizem muitos observadores, recordando o furacão que arrasou Nova Orleães a 29 de Agosto de 2005.
Ao contrário do Presidente norte-americano de então, George W. Bush, o Presidente brasileiro precisa de demonstrar capacidade de liderança para mobilizar ajuda. Foram afectadas pelas cheias 1,5 milhões de pessoas, pelo menos 230 mil tiveram de deixar as suas casas, e há 107 mortos confirmados, 136 desaparecidos. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, disse na rede social X que as primeiras estimativas do dinheiro que será necessário para a reconstrução apontam para qualquer coisa como 19 mil milhões de reais, ou seja, cerca de 3500 milhões de euros. Só como exemplo, 70% da produção de arroz no Brasil vem daquele estado.
Um relatório do Congresso norte-americano, publicado em 2006, considerou “um falhanço nacional” a resposta ao furacão Katrina, cujas consequências foram agravadas pela demora de George W. Bush em reagir.
Mas as cheias catastróficas que deixaram o centro histórico da cidade de Porto Alegre alagado, com barcos a atravessar as avenidas, em vez dos carros afogados debaixo da água e da lama, fazem recordar o Katrina, o furacão que a 29 de Agosto de 2005 arrasou a cidade de Nova Orleães, nos Estados Unidos.
“Nenhuma imagem representou melhor a negligência e abandono de Nova Orleães do que a fotografia do Presidente, George W. Bush, a vislumbrar da janela do Air Force One a devastação provocada pelo Katrina“, escreveu dez anos depois a jornalista Rita Siza, que era correspondente do PÚBLICO nos Estados Unidos e visitou a devastada Nova Orleães algum tempo depois da passagem do furacão.
“Bush demorou três dias a montar uma reacção ao desastre: renitentemente interrompeu as férias de seis semanas para voltar a Washington, e só pôs os pés na cidade ao princípio da tarde de sexta-feira, para tirar uma fotografia em frente de um dos diques da cidade e fazer uma declaração de cinco minutos no aeroporto”, recordou.
O desastre de Nova Orleães não se deveu apenas ao que aconteceu no dia em que foi atingida pelo furacão. Se a mentira tem perna curta, as tragédias costumam ter uma cauda longa, testemunha do longo processo de erros e incúrias que conduziram a um falhanço monumental.
No caso de Porto Alegre, no Sul do Brasil, já não é novidade que as alterações climáticas podiam trazer cheias. Desde 2015, pelo menos, que um estudo pedido pelo Governo da então Presidente Dilma Rousseff, Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima, falava, entre outros pontos, no aumento das chuvas no Sul do país. Não está disponível online, mas o site The Intercept Brasil descobriu-o na Wayback Machine, um serviço que permite ver versões arquivadas de sites.
E, no relatório de 2023 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), foi apontada a relação entre as fortes precipitações observadas na região em que fica o Rio Grande do Sul desde a década de 1950 e as alterações do clima provocadas pela acção humana – ou seja, pelo lançamento para a atmosfera de enormes quantidades de gases com efeito de estufa. Estas enchentes “confirmam algo que estamos dizendo há tempos: que, para além das variabilidades naturais que levam aos eventos extremos, existe uma contribuição ou influência humana”, disse à BBC Brasil Thelma Krug, cientista brasileira que foi vice-presidente do IPCC entre 2015 e 2023.
O El Niño foi um factor agravante, mas as inundações no Rio Grande do Sul “foram exacerbadas por uma combinação de alterações climáticas, desmatamento e urbanização desenfreada”, disse ao New York Times Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília, ecologista e colaboradora de alguns dos relatórios do IPCC. “Ainda vamos viver muito mais extremos, segundo os modelos climáticos, na região agora afectada”, disse ainda Bustamante à BBC Brasil.
Além de algumas críticas à morosidade com que a protecção civil do Rio Grande do Sul reagiu aos alertas meteorológicos, a acção dos políticos está também a ser apontada a dedo. Por exemplo, a desmontagem feita pelo actual governador do estado, Eduardo Leite, em 2019, ao Código Ambiental, uma legislação que tinha passado quase uma década a ser elaborada. Sofreu 480 alterações em 75 dias, sem ouvir peritos nem ser analisada na comissão de saúde e ambiente da Assembleia Estadual, recorda o site brasileiro O Eco.
A ocupação humana do território sem respeito pelas características do terreno, ou pela natureza, como a vegetação, dando rédea livre aos interesses de especulação imobiliária ou da grande exploração agrícola, é apontada a dedo. Na reconstrução do Rio Grande do Sul, vai ser preciso aquilo a que o professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande Marcelo Dutra da Silva, chama “desedificar”: remover as estruturas das cidades que estão em áreas de risco e recomeçar em regiões mais seguras, explicou à BBC News Brasil.
“Cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infra-estruturas urbanas dos ambientes de maior risco, que são as áreas mais baixas, planas e húmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales”, vaticinou. “Não adianta querer reconstruir tudo o que foi destruído agora, tentando fazer como era antes. Isso já não dá mais.”
É essa a principal mensagem: não dá mais para fazer como se fazia.