Chegamos este mês ao cinquentenário da Revolução de Abril. Concomitantemente, iniciou-se esta terça-feira um novo ciclo político com a tomada de posse do governo de Luís Montenegro. No seu discurso, o Presidente da República qualificou o resultado das eleições como um voto de “fé na democracia”, ao inverter “a abstenção, que parecia imparável”. Essa quebra na abstenção é boa notícia, pois alargou a participação democrática; ainda assim, foi com apreensão que se registou a bravata de André Ventura ao celebrar a eleição de 50 deputados nos 50 anos do 25 de Abril como um “ajuste de contas com a história”.
É, pois, inevitável que na celebração do legado de Abril e no balanço do que se cumpriu e do que falta cumprir se entreteçam revisitações do passado com desafios do presente e anseios para o futuro. Foquemo-nos na situação política atual.
Excedente: o acerto autodestrutivo do PS
Quando, a 7 de novembro o último parágrafo do comunicado da PGR sobre a Operação Influencer acaba por levar à demissão de António Costa, poucos achavam possível que a legislatura de um governo de maioria absoluta fosse tão curta.
Face ao clima de suspeitas de corrupção, ao pouco tempo de preparação do novo secretário-geral e ao desgaste natural provocado por oito anos de governação, o resultado do PS de Pedro Nuno Santos foi honroso. Mas de que forma as opções de fundo do PS condicionaram o resultado das eleições?
Pode especular-se que, em certo sentido, o seu maior sucesso foi também o maior erro. Apostado em tornar-se o partido das contas certas, reduzindo a dívida pública e obtendo excedentes orçamentais, o partido logrou afastar-se da imagem que deixara antes da entrada da troika, terá consolidado a reputação do país perante as agências de notação financeira e gerado uma folga que permitiria, no futuro, fazer face a eventuais aumentos das taxas de juro.
Mas a vitória de se atingir os 98,7% do PIB em dívida pública em 2023 e um excedente de 3,19 mil milhões de euros teve o preço do investimento que não se fez: até se investiu no SNS mas descuraram-se as carreiras, não se conseguindo reter médicos e tendo de se gerir o descontentamento de professores e depois também das forças de segurança; permitiu-se que o problema da habitação se agravasse; e a ciência continuou a ser um parente pobre na equação. Com isso, criou-se um caldo de insatisfação que também ajuda a explicar os resultados eleitorais.
Perante esta situação, o novo PS, mais à esquerda, terá a tarefa difícil de tentar continuar a aparecer como um partido responsável (não querendo ser acusado de instabilidade política nem de atirar o país para os braços da extrema-direita), viabilizando as medidas com as quais possa concordar, mas sem se deixar colar demasiado ao governo, sob pena de reforçar a indistinção centro-esquerda/centro-direita que é mortal para os partidos tradicionais. À esquerda do PS, o desafio é mostrar que os problemas que levam ao descontentamento e ao voto de protesto são melhor resolvidos pela sua área política, mas esta não será uma legislatura fácil para estes partidos.
A linha fina de uma governação a prazo incerto
Face ao excedente, o novo primeiro-ministro já avisou que “não ficámos um país rico”, pelo que se antecipa a continuidade de uma linha de contenção, embora possa ser grande a tentação de distribuir para ganhar popularidade face à perspetiva de eleições a curto prazo.
Os desafios que se colocam ao novo governo são múltiplos. Têm como horizonte último a instabilidade geoestratégica, num momento em que pouco se consegue fazer para travar o conflito em Gaza e em que a possível vitória de Trump nas eleições de novembro deixaria a Ucrânia, e a Europa, num contexto de maior vulnerabilidade face à Rússia.
Neste contexto, imagine-se, equaciona-se na Europa o regresso do serviço militar obrigatório e não se descarta, na sequência das declarações de Emmanuel Macron, o envio de tropas para a Ucrânia. Dependendo da evolução destes conflitos, estas são questões com que o atual Governo se poderá vir a confrontar, para lá da pressão, já existente, para se reforçar o orçamento alocado à defesa – se tal se verificar, é caso para perguntar: em detrimento de quê?
Mas as questões mais prementes ocuparão o futuro mais próximo, e essas passam pelas pressões que já se fazem sentir para resolver os problemas de carreiras e remunerações, o propalado “plano de emergência para a saúde”, ou a tentativa de reformar a justiça, anunciada como primeira prioridade do Governo.
Poderá um Governo com um apoio parlamentar tão ténue ter sucesso em qualquer tipo de agenda reformista, ou conseguir impulsionar um cenário macroeconómico tão ambicioso como aquele que apresentou em campanha? É duvidoso. Mas uma coisa parece certa, e é que a especulação sobre a tática política ocupará um enorme espaço na agenda mediática e na política quotidiana.
Até à votação do Orçamento do Estado para 2025, quase tudo o que se fará será fruto de cálculo sobre possíveis vantagens eleitorais em eleições futuras; o PSD pretende vincular o PS à viabilização do seu programa, sob pena de se vitimizar pela instabilidade política e tentar procurar uma maioria mais robusta em eleições futuras; o PS viabilizará o que lhe parecer favorável, mas tentará constituir-se como alternativa; e o Chega tentará reclamar para si o papel de líder da oposição, algo que o PS não pode deixar que aconteça.
Quanto ao Governo, mais por absoluta necessidade do que por convicção, tentará apresentar-se como paladino do diálogo, essa virtude outrora louvada por António Guterres. Resta saber com quem vai efetivamente escolher dialogar caso a caso, e se o conseguirá, ou será deixado a falar sozinho.
Ciência e Ensino Superior: um caso peculiar
Ainda que a situação seja politicamente instável, os problemas permanecem e terão de ser enfrentados. No que à orgânica do Governo diz respeito, concentremo-nos num ministério, aquele que maior estranheza causou, o da Educação, Ciência e Inovação.
A desaparição de um Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior parece marcar um retrocesso no sempre frágil caminho da ciência em Portugal, e a escolha de negar autonomia à ciência e fundi-la com a pasta da Educação foi contestada por estudantes (como o movimento estudantil do ensino superior), bolseiros de investigação científica e diversas personalidades ligadas à ciência e à investigação em Portugal.
O novo ministro terá nas mãos não só a tarefa de gerir as reivindicações dos professores quanto à restituição do tempo de serviço, como o da bomba-relógio da precariedade dos investigadores científicos e inevitável ‘fuga de cérebros’ se não for dada uma resposta robusta.
Ao fundir ciência e inovação, pode ser de temer não só um abandono da especificidade das políticas de ciência, como um aprofundamento do caminho já começado de negligência da ciência fundamental (e das Artes e Humanidades) a favor da ciência “aplicada”, o que, a confirmar-se (e esperemos que não aconteça), seria trágico para a pujança e diversidade da investigação em Portugal.