Estamos em plena semana das comemorações do cinquentenário do 25 de abril. Cumprem-se cinco décadas sobre “o dia inicial inteiro e limpo”, como foi deliciosamente definido pela poetisa Sophia de Mello Breyner.
Cinquenta anos, meio século, é um tempo suficientemente longo para nos permitir ter uma visão menos desapaixonada e, por isso, mais objetiva e rigorosa, sobre o percurso evolutivo da sociedade portuguesa. Sobre o que eramos e passámos a ser. Sobre o que mudou, como mudou e porque mudou, e em que medida todas essas mudanças têm afetado a estilo e sobretudo a qualidade de vida dos portugueses.
Claro que dificilmente se pode argumentar ou sequer imaginar que se a revolução não tivesse ocorrido a nossa vida estaria ainda presa algures lá nessa circunstância passada de que nos libertámos, ou que seria radicalmente diferente do que é. Obviamente que não. Afinal, os países e as sociedades não estão sozinhos no mundo, e, na dinâmica própria das relações e dos laços que estabelecem entre si, e que unem os povos, muitas das mudanças, provavelmente a maioria, teriam sucedido de modo muito idêntico ao que se tem verificado um pouco por todo o lado, nomeadamente por estarmos integrados em dinâmicas como a globalização, as tecnologias, as novas formas de comunicação e as redes sociais.
Mas independentemente destes exercícios mais ou menos filosóficos que inevitavelmente sempre acabam por se fazer nestas ocasiões de celebração, a verdade é que, todos os dados o sustentam, a qualidade média de vida das pessoas em Portugal melhorou significativamente em muitos âmbitos. Por exemplo, com o acesso universal a serviços de cuidados de saúde, à educação, aos apoios sociais, à cultura, à segurança, entre tantas e tantas componentes que podem ser consideradas.
Porém, como é também natural nestas dinâmicas, subsistem questões e problemas relativamente aos quais parece que as mudanças não operaram assim de forma tão evidente ou eficaz.
Uma dessas problemáticas é precisamente a da corrupção, a que tenho dedicado uma particular atenção nestas crónicas. Efetivamente, ao longo destas cinco décadas, o tema foi marcando uma presença regular, por vezes forte, na agenda mediática e pública da sociedade e na atenção dos portugueses. E, a par de todo esse ruido mediático, foram-se gerando junto da generalidade pessoas, sentimentos de desagradado, insatisfação, desconforto e sobretudo de desconfiança sobre as elites e as lideranças políticas, uma vez que a dinâmica da mediatização do problema se construiu sempre muito em torno de suspeitas envolvendo esses grupos sociais.
E, tanto quanto se sabe, uma das motivações que conduziu à revolução que agora se assinala terá sido precisamente a questão da corrupção, como decorre textualmente do Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas, publicado em anexo à Lei n.3/74, de 14 de maio, da Junta de Salvação Nacional, que expressamente reclamava a adoção de medidas imediatas que conduzissem ao “combate eficaz contra a corrupção e especulação”.
E, como sabemos, passados todos estes anos, aqui estamos com o tema da corrupção continuamente no centro das preocupações dos portugueses, uma espécie de elefante no meio da sala, como se as sucessivas lideranças políticas pouco ou nada tivessem feito para encontrar soluções capazes de ir ao encontro eficaz daquela reclamação revolucionária, e também para conferir outros sinais de confiança junto dos cidadãos relativamente às perceções que têm sobre as lideranças e as instituições.
Por isso a “luta contra a corrupção” acabou por se tornar numa espécie de bandeira que foi sendo adotada pelos sucessivos governos, quase numa lógica de “agora é que vai ser”, para depois, mais adiante no tempo, tudo acabar por ser colocado uma e outra vez em causa, precisamente pelo aparecimento de notícias e de suspeições envolvendo tudo e todos.
A sondagem de opinião Saúde sim, habitação menos, corrupção nada: o que mudou desde Abril? apresentada no último fim de semana pelo Expresso e pela SIC, revelou precisamente que, na perceção dos portugueses, a corrupção é o problema que menos se alterou durante estes 50 anos, o que é um sinal revelador de um certo estado de desconfiança dos cidadãos face às lideranças políticas.
Mas, questiona-se, será que efetivamente nada se fez?
Claro que sim. Que os sucessivos governos, uns mais do que outros, como é normal nestas coisas, se têm preocupado com a questão e vão adotando soluções para lhe fazer faca. A avaliar pelo número de normativos produzidos não se poderá afirmar que nada de concreto tenha sido realizado.
O quadro que anexamos a este texto dá nota da evolução do número de documentos normativos que foram publicados com a presença do termo corrupção no período temporal correspondente a estes 50 anos. Entre 25 de abril de 74 e 20 de abril de 2024 foram publicados, na série I do Diário da República, 603 documentos normativos com a presença do termo “corrupção”, de entre os quais cabe destacar os números de 152 Leis, 142 Decretos-Lei, e de 106 Resoluções da Assembleia da República. A evolução gráfica registada dessas publicações em cada ano revela uma tendência de crescimento, com um considerável incremento a partir dos anos 2000, o que de alguma forma contraria a perceção de inoperância das governações nesta matéria.
Claro que se trata unicamente de números, que por si só nada nos dizem quanto às medidas concretas que encerram. Mas, ao menos, não deixa de ser um indicador objetivo de que o tema da corrupção tem sido objeto de atenção e de trabalho pelas sucessivas lideranças políticas.
Importa naturalmente estudar o conteúdos destes documentos normativos, das circunstâncias em que foram produzidos, da articulação desses conteúdos com as vinculações do pais a convenções internacionais sobre a corrupção, como a União Europeia, a ONU, a OCDE, o Conselho da Europa, bem como com as recomendações decorrentes das avaliações internacionais realizadas no âmbito dessas convenções, e ainda com os picos mediáticos de suspeitas de corrupção que têm marcado alguns momentos destes 50 anos, como as fraudes ao Fundo Social Europeu, a realização das grandes obras públicas, ou a gestão pública em determinados setores.
Estes são elementos importantes para uma melhor compreensão do caminho percorrido na nossa “luta contra a corrupção”, da sua eficácia, bem como das componentes a corrigir, com a certeza de que, pela sua natureza, o problema estará sempre presenta na vida das sociedades (a “luta contra a corrupção” é permanente e faz-se com o contributo de todos) e que tem sido uma preocupação crescente na generalidade dos países (a corrupção não é um problema exclusivo de Portugal), sobretudo nos que têm uma matriz democrática (como se evidencia pelas sucessivas convenções internacionais que os países e as organizações vão estabelecendo entre si).