Em 19 de dezembro de 2017, o recluso Adelino Briote, de 63 anos, enforcou-se no Hospital Prisional de Caxias, onde estava internado devido a sucessivos surtos psicóticos. Cumpria pena pelo homicídio de cinco pessoas – cinco mortes evitáveis, não fora uma decisão judicial enquadrável numa das grandes continuidades da ditadura para a democracia: a de a violência contra as mulheres se configurar demasiadas vezes como um crime sem punição.
A história desta matança começou em 2013, quando, contra a sua vontade, a mulher lhe impôs o divórcio. Os próximos do casal, todos vizinhos numa aldeia de Barcelos, ficaram do lado dela. Em março de 2015, Adelino agrediu com um ferro uma filha de 31 anos, grávida, e a sogra, de 75 (sobreviveram porque conseguiram fugir). Foi condenado a três anos e dois meses de prisão, mas com pena suspensa, em troca de um plano de reinserção (que nunca aconteceu). Adelino regressaria à aldeia em janeiro de 2017 e tinha contas para ajustar.
Na manhã de 24 de março, vingou-se de quem não o apoiou. Degolou Marisa, de 37 anos, grávida de sete meses; António Vale e Maria da Glória, octogenários; e Maria Sameiro, de 62. Quatro mortes, mas na verdade cinco, contando com a bebé de Marisa, que lhe foi retirada do ventre, registada como Francisca e enterrada com a mãe. Crimes sem castigo Pena suspensa e/ou suspensão provisória do processo (SPP).
São dois mecanismos aplicados em diferentes momentos, mas cujo resultado final é o mesmo: o agressor fica livre. Os dados mais recentes, noticiados há dias (8 de abril) pelo CM, dispensam adjetivos: em cada dez condenados por violência doméstica em 2022, só um cumpriu pena de prisão. A maioria (68%) beneficiou de SPP. Quanto aos números totais, tudo continua rigorosamente na mesma, registando-se de 2022 para 2023 uma descida inferior a um ponto percentual (0,08, mais precisamente, ou seja, de 30.488 para 30.461).
Na segmentação dos crimes, a violência doméstica continuava, no ano passado, a ser o crime com mais peso, à frente da condução alcoolizada. Já o abuso das SPP tem sido, até, objeto de censura internacional. Na monitorização da Convenção de Istambul, o Conselho da Europa criticou Portugal devido a taxas de condenação que “permanecem baixas” como consequência do “uso generalizado de processos suspensos”. Só que o problema não acaba aqui. Também inclui, num movimento simétrico, o não uso de mecanismos punitivos que existem.
Não se pratica, por exemplo, o julgamento sumário de abusadores apanhados em flagrante (“uma falha do nosso sistema”, reconheceu em outubro de 2022, ao JN, o procurador Rui do Carmo, então coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica) ou a condenação por crimes de importunação sexual (“são raríssimas as decisões que os punem”, lia-se no DN, em junho de 2023).
50 anos depois do 25 de Abril, a violência sexual continua assim a ser, em grande medida, o que era antes: um crime sem castigo. É certo que as leis evoluíram e não foi pouco. A violação dentro do casamento passou a ser crime e deixou de haver perdão para o violador que casa com a vítima – dois exemplos de anacronismos revogados. Além disso, já não surgem muitas sentenças como a da
“coutada do macho ibérico”. E, ao contrário do que se fez em tempos na Relação do Porto para absolver um suspeito de violação, desapareceu da jurisprudência a “vis grata”, expressão latina para a “violência agradável” que Ovídio usou na “Arte de Amar” para dizer que é normal na sedução a mulher fingir que recusa sexo, pelo que é legítimo pelo homem o uso de força (e assim uma violação passa a encenação mutuamente consentida). Isto já pouco existe.
Mas o machismo bruto das leis e das sentenças transformou-se da ditadura para a democracia num machismo sonso que se opera por duas vias: o abuso de mecanismos de perdão; e o não uso de mecanismos punitivos. Os números são o que são: de 2021 para 2022, o número de mulheres assassinadas aumentou (de 23 para 28): uma mulher foi morta a cada 13 dias que passam. A alheira de Mirandela não existe?
Luís de Sousa (n.1973), cientista político, é um dos principais especialistas portugueses no estudo da corrupção. Tendo crescido na cidade transmontana de Mirandela, fez-me uma revelação avassaladora. A alheira de Mirandela não existe. Isto é: “A alheira de Mirandela não era feita em Mirandela.”
A cidade fica num vale fechado, com um clima de “nove meses de inverno e três de inferno”, pelo que não seria ali possível a produção deste enchido. O que Mirandela tinha, isso sim, era uma estação de comboios, “que levava as alheiras para o todo o lado”, designadamente Lisboa, onde “chegavam à mesa de muitos deputados e diretores de serviço”, representação de uma “mentalidade de ofertas e hospitalidades” que “ainda hoje existe”: “Os transmontanos são brutais. Nunca ninguém vai de mãos vazias, é um investimento contínuo. Não há necessariamente um quid pro quo. Vai-se pondo manteiga e, eventualmente, numa ocasião qualquer no futuro, pode-se sentir a necessidade de pedir um favor.”
Isto tem um nome técnico: “corrupção não transativa” ou “corrupção paroquial”. Num ensaio (ainda só em esboço) sobre “A democratização da corrupção em Portugal”, o investigador integra estas práticas numa continuidade da ditadura para a democracia. Outra continuidade relevante é a do elitismo da classe governante. Tem transitado de regime em regime, mesmo quando as transições implicaram, da noite para o dia, a substituição total de uma classe política. Por elitismo significa-se que os pobres não chegam à política e que a formação média dos governantes é extraordinariamente superior à dos governados.
Na prática: Portugal não é um país, mas sim dois, o dos governantes e o dos governados. Já era assim na ditadura (a “catedratocracia”, como lhe chamaram). Salazar ambicionava a despolitização total e a União Nacional nunca foi pensada como um partido de massas. Fornecia a Assembleia Nacional, mas era-lhe recusada utilidade nos elencos ministeriais. E isso, atualmente, ainda é assim: os partidos preenchem o Parlamento, mas menos os governos.
Para se legitimarem face a um povo que despreza os partidos, os primeiros-ministros da democracia têm procurado recrutar na “sociedade civil” os chamados “independentes”. Que é exatamente o que Salazar fazia: “Quando precisava de um ministro da Agricultura ia ao Instituto Superior de Agronomia e pedia um catedrático”, diz António Costa Pinto, um dos principais estudiosos em Portugal das elites governantes. O elitismo permanece também porque o PS e o PSD foram criados (ao contrário dos seus congéneres europeus) sem qualquer base operária ou sindical, antes assentando em burguesias estabelecidas.
Não resulta assim do acaso que Portugal seja um dos países mais desiguais da Europa. A elite governante tem sido formada no essencial por quem pouco contacto teve com a pobreza. Esta, por isso, não suscita empatia. E sem empatia elimina-se uma condição essencial à resolução dos problemas. Em suma… Elitismo na política e machismo na justiça representam duas inércias profundas que passam de regime em regime, fenómenos que têm sobrevivido a todos os movimentos transformadores. Ambos confluem no mesmo resultado final: desigualdade. Ou desigualdade social (no caso do elitismo) ou desigualdade de género (com o machismo). E assim continuará a ser enquanto a sociedade portuguesa não perceber, no seu conjunto, que desigualdade rima com indignidade.
João Pedro Henriques assina este texto na qualidade de autor do ensaio “Revolução Inacabada – O que não mudou com o 25 de Abril”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a FFMS.